Saúde
Vacinação brasileira é modelo para o mundo, mas enfrenta desafios
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Prevenir contra o sarampo uma criança da Terra Indígena Bacurizinho, no Maranhão. Vacinar contra a pneumonia um idoso acamado em casa, no Complexo da Penha, no Rio de Janeiro. Proteger da raiva um adolescente ferido por um morcego silvestre na zona da mata mineira. Imunizar um bebê contra o tétano ainda na barriga da mãe.
Aplicar centenas de milhões de doses de vacinas por ano em mais de 5 mil municípios. Fazer tudo isso de forma gratuita e segura foi o que tornou o Programa Nacional de Imunizações [PNI] do Brasil o maior do mundo e uma referência até mesmo para países desenvolvidos.
Há 50 anos, o PNI cumpre a ambiciosa missão de vacinar uma enorme população dispersa num território continental chamado Brasil, profundamente marcado pela diversidade de culturas e cenários, e também pela desigualdade de condições de vida. Ao longo do mês de setembro, a Agência Brasil vai relembrar as conquistas dessas cinco décadas, discutir os desafios do futuro e destacar a importância das vacinas para a saúde coletiva do povo brasileiro e da humanidade.
Apesar de ser considerado o maior programa de vacinação público e gratuito do mundo, com 20 vacinas que eliminaram doenças importantes como a poliomielite, o tétano neonatal e a rubéola congênita, o programa completa meio século de vida lutando para reverter retrocessos que levaram as coberturas vacinais de volta aos níveis dos anos de 1980. Pesquisadores veem com otimismo o novo momento vivido pelo programa, mas apontam que há um longo caminho a ser percorrido.
Referência global
“Nós, os brasileiros do PNI [Programa Nacional de Imunizações], fomos solicitados a dar cursos no Suriname, recebemos técnicos de Angola para serem capacitados aqui. Estabelecemos cooperação técnica com Estados Unidos, México, Guiana Francesa, Argentina, Paraguai, Uruguai, Venezuela, Bolívia, Colômbia, Peru, Israel, Angola, Filipinas. Fizemos doações para Uruguai, Paraguai, República Dominicana, Bolívia e Argentina”.
O trecho, retirado do livro comemorativo dos 30 anos do PNI, organizado pelo Ministério da Saúde, deixa claro o destaque internacional do Brasil no setor de imunizações. O ano era 2003, e a imunização no país exibia elevados percentuais ano após ano, o que levou à eliminação do tétano neonatal, da rubéola congênita e do sarampo do país nos anos seguintes. Desde 2015, porém, uma queda considerável na busca pela vacinação fez com que o país revivesse o medo de doenças que ele já tinha vencido: o sarampo retornou em 2018, e a volta da pólio é considerada uma ameaça de alto risco.
A chefe de saúde do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) no Brasil, Luciana Phebo, classifica o programa como uma referência global, principalmente para países com renda média e baixa e semelhanças socioeconômicas com o Brasil.
“É um programa de referência não só para a América Latina, mas para países da África também. E o Unicef, junto com a OMS [Organização Mundial da Saúde], tem também essa função de levar boas práticas do Brasil para outros países de contextos semelhantes. O PNI não é só importante para o Brasil, é importante para todo o mundo”.
Luciana Phebo destaca que o Brasil dispõe de ferramentas importantes que criaram as condições para um programa tão bem sucedido, como um sistema público e universal de saúde, instituições com tecnologia para produzir vacinas, e uma rede de atenção básica que ainda pode melhorar, mas que conta com um alcance relevante para chegar a quem precisa das vacinas.
“O SUS [Sistema Único de Saúde] é extraordinário, está acima do que acontece no mundo e até mesmo em países desenvolvidos, com a capilaridade, com uma gestão unificada, com o Ministério da Saúde chegando aos municípios mais remotos e a todo o território nacional, que é vastíssimo. Poucos países têm essa estrutura.”
As quedas nas coberturas vacinais observadas desde 2015, porém, acenderam um sinal de alerta para autoridades sanitárias do Brasil e do exterior, e a possibilidade de que doenças eliminadas do país retornem causa preocupação.
“Com a pandemia, essa redução se agravou e, no período pós-pandêmico, acontece uma pequena melhora, a curva começa a tomar uma outra direção, mas essa resposta tem que ser acelerada. E ainda não teve a aceleração necessária para garantir que não haja reintrodução de doenças como a poliomielite ou surtos de sarampo que poderão voltar a acontecer”.
Reconstrução progressiva
Em entrevista à Agência Brasil, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, destaca que o governo tem atuado para reestabelecer o protagonismo do programa e a confiança da sociedade no Ministério da Saúde enquanto autoridade sanitária nacional. Apesar de considerar que o desafio está sendo vencido, ela lembra que a reconstrução será progressiva e levará tempo.
“Quando começamos a avançar com maior expressão, a partir de fins da década de 1980, o mundo ficou impressionado com nossa capacidade de engajar a população, de estabelecer essa relação de confiança com a vacinação. A experiência bem-sucedida e a proteção contra diversas doenças, perceptíveis nos dados de redução e eliminação dessas doenças, reforçaram essa confiança que precisamos hoje recuperar”, reforçou.
“Reconquistar as altas coberturas vacinais, portanto, em um segundo momento, pode voltar a nos colocar em uma posição de referência que nos faça contribuir mais no enfrentamento ao negacionismo e à hesitação vacinal. Nosso objetivo é voltar a ser exemplo para o mundo. Retomar essa posição de referência internacional e mobilizá-la na nossa cooperação com outros países, incluindo a vacinação, é nossa prioridade.”
SUS
Consultora da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) e ex-coordenadora do PNI, Carla Domingues destaca que o programa se fortaleceu porque foi considerado uma política de Estado, tendo se estruturado desde a ditadura militar e passado por diferentes governos democráticos. A robustez conquistada, porém, veio principalmente na década de 1990, a partir da criação do Sistema Único de Saúde (SUS).
“O PNI foi um exemplo de sucesso porque todos os princípios do SUS foram efetivamente consolidados. Começando pela universalidade, que define que todas as vacinas cheguem a toda a população brasileira, seja ela dos grandes centros, cidades médias, população ribeirinha ou indígena”, afirma Carla Domingues, que esteve à frente do programa brasileiro por 13 anos.
“A história de sucesso vai até 2016. Hoje, infelizmente, nossos indicadores estão sendo comparados a países como Haiti e Venezuela. Infelizmente, deixamos de ser modelo. O grande desafio é voltar a estabelecer essa confiança que a gente teve por mais de quatro décadas, com a população brasileira sendo responsável e comparecendo aos postos de vacinação”.
Um ponto importante que o PNI introduziu no país, explica a especialista, foi a participação dos estados e municípios nas políticas de imunização, com atribuições definidas para cada uma das esferas do governo. A compra centralizada e em larga escala de vacinas para todo o país por parte do governo federal, também garantida a partir do programa, foi essencial para que todas as populações pudessem ser vacinadas, independentemente da saúde financeira ou prioridade orçamentária de seus estados.
“Até a década de 1970, os programas da varíola, da pólio e da rubéola faziam suas compras, e não havia uma política nacional de aquisição de vacinas. E para doenças como sarampo, difteria, tétano e coqueluche, os estados que tinham recursos faziam programas estaduais. Isso não tinha impacto para a eliminação das doenças. Com compras centralizadas, distribuição e aplicação descentralizadas, garantia de fornecimento e toda uma cadeia de transporte e logística, você conseguiu implementar essa política de vacinação”.
Calendários para todos
Toda essa estrutura permitiu que o programa saísse das quatro vacinas ofertadas na década de 1970 para 20 vacinas disponíveis hoje, com calendários para crianças, adolescentes, adultos, gestantes e campanhas de grande porte como a vacinação anual contra o Influenza.
Esses motivos fizeram com que o Brasil sempre fosse convidado a apresentar suas experiências nas reuniões da Organização Pan-Americana de Saúde, lembra Carla Domingues, que acrescenta que o país também implementou de forma célere as recomendações e os compromissos debatidos no organismo internacional.
“O Brasil serviu de modelo quando a organização mostrava os casos de sucesso e, principalmente, pelos desafios, sendo um país tão grande, com populações tão dispersas e em condições geográficas tão diferentes.”
A presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), Monica Levi, concorda que, apesar de cada país ter suas características, o Brasil era um modelo. Ela destaca que, da mesma forma, outras experiências internacionais podem agregar estratégias no enfrentamento de desafios, como o antivacinismo.
“O Brasil é um país que serve de modelo por ter um êxito nas coberturas vacinais por vários e vários anos, o que não é mais uma realidade agora”, conta Mônica.
“É importante ver como outros países enfrentaram as crises de confiança e conseguiram contornar a situação. Mas o que acontece em um país em termos de hesitação vacinal nem sempre é o mesmo que em outros”, afirma a especialista apontado exemplos como o Japão e a Austrália, que enfrentaram fortes movimentos antivacina contra o imunização anti-HPV.
A SBIm, a Fundação Oswaldo Cruz e o Ministério da Saúde têm trabalhado juntos em um projeto de reversão das baixas coberturas vacinais que obteve bons resultados no Amapá e na Paraíba, envolvendo as comunidades e os líderes comunitários na mobilização pró-vacinas. Esses resultados têm norteado as campanhas de multivacinação que devem chegar a todos os estados até o fim do ano.
“Já vejo melhora, mas não para todas as vacinas. Sou otimista e acredito que vamos conseguir recuperar nossa cobertura vacinal e voltar a ser como éramos antes. Já tivemos uma melhora em 2022, mas ainda não estamos perto de atingir o que a gente precisa. Ainda tem muito trabalho pela frente”.
*Colaborou Tâmara Freire, da Rádio Nacional
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