Direto de Brasília
Tráfico de pessoas, exploração sexual e trabalho escravo: uma conexão alarmante no Brasil
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No próximo dia 30 de julho, o Brasil se une a países ao redor do mundo para marcar o Dia de Combate ao Tráfico de Pessoas. A data tem como objetivo alertar a sociedade sobre o crime que afeta cerca de 2,5 milhões de pessoas e movimenta aproximadamente 32 bilhões de dólares por ano, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU). A atividade criminosa é persistente por ser lucrativa e por estar diretamente ligada à desigualdade social, econômica, racial e de gênero. Essas desigualdades, também chamadas de estruturais por serem sistemáticas e duradouras, contribuem para que grupos vulneráveis da população, como as mulheres e crianças pobres, os migrantes, os refugiados e os socialmente excluídos, aceitem propostas enganadoras e abusivas.
No Brasil, entre 2012 a 2019, foram registradas 5.125 denúncias de tráfico humano no Disque Direitos Humanos (Disque 100) e 776 denúncias na Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180), ambos canais de atendimento do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (MDHC). Entre os anos de 2010 a 2022 foram contabilizadas 1.901 notificações no Sistema de Informação de Agravos de Notificação do Ministério da Saúde (SINAN). Além disso, 60.251 trabalhadores foram encontrados em condições análogas à escravidão entre 1995 a 2022, segundo dados do Observatório da Erradicação do Trabalho Escravo e do Tráfico de Pessoas.
Esses números não representam a totalidade de casos existentes no país. A suposição é de que haja muito mais, uma vez que não há um sistema unificado de coleta de dados sobre o tema. Os registro atuais são feitos por órgãos do governo e de instituições que não podem ser somados, considerando que não são utilizados os mesmos critérios para o registro das situações de tráfico, conforme aponta o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC) e o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP), no Relatório Nacional Sobre Tráfico de Pessoas (2017-2020).
Violência de gênero
As mulheres e as meninas são a maioria das vítimas do tráfico de pessoas para fins de exploração sexual no Brasil. Nos últimos dez anos, 96% das vítimas desse crime em ações penais com decisão em segunda instância na Justiça Federal eram mulheres. As informações são de relatório sobre o funcionamento do sistema de justiça brasileiro na repressão do tráfico internacional de pessoas, feito pela Organização Internacional para as Migrações (OIM) e pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2021. O relatório reúne 144 ações penais com decisão em segunda instância da Justiça Federal.
O Brasil é indicado como o país de origem de 92% das 714 vítimas citadas nos processos. Quase todas as vítimas brasileiras (98%) foram levadas para o exterior ou, pelo menos, houve a tentativa de enviá-las, para a prática de prostituição, em sua maioria na Europa. A Espanha é o país que mais recebeu as vítimas traficadas do Brasil (56,94%), seguida por Portugal, Itália, Suíça e Suriname. Estados Unidos, Israel e Guiana também foram destinos escolhidos para o tráfico.
Os meios mais utilizados para cometer o crime foram fraude (50,69%), abuso de situação de vulnerabilidade (22,91%), coação e grave ameaça (4,16%).
— É um crime que tem perspectiva de gênero. As relações desiguais de gênero socialmente construídas, culturalmente aceitas e historicamente reproduzidas confirmam-se de forma definitiva no âmbito do tráfico de pessoas, configurando-se como uma das piores formas de violência de gênero.
Para Anna Carolina, que também é especialista em temas relacionados à perspectiva de gênero e tráfico humano, os dados mais recentes sobre a exploração de mulheres são essenciais para a eficácia da prevenção, detecção e combate ao crime e para o atendimento às vítimas.
— Ainda é necessário caminhar para alcançar o combate aos elementos inerentes ao fenômeno do tráfico internacional de pessoas, sobretudo no que se refere à articulação e transversalização das políticas nacionais e regionais, para a efetividade de uma rede de enfrentamento, com estratégias de superação das desigualdades e violências de gênero — conclui a especialista.
Além da exploração sexual, o trabalho escravo é outra finalidade comum ao tráfico de pessoas. A escravidão moderna atinge 50 milhões de pessoas no mundo, de acordo com a Organização Nacional do Trabalho (OIT). A procuradora do Ministério Público do Trabalho Andrea Gondim explica que o principal desafio para o combate do tráfico de pessoas, principalmente da exploração de trabalhadores escravizados, está relacionado à superação da pobreza e desigualdade social.
— As pessoas aceitam uma oferta de emprego sempre buscando mudar ou melhorar de vida e buscar melhores condições de trabalho. Então, se a gente vive num contexto de desigualdade social e de pobreza, as pessoas vão querer aceitar essas propostas e migrar para locais em que supostamente teriam melhores condições de vida e de trabalho — afirma.
Os locais de naturalidade e os de residência dos trabalhadores resgatados são geralmente marcados por baixo índice de desenvolvimento humano e costumam se caracterizar pela falta de oportunidades de emprego, pela pobreza, baixa escolaridade, desigualdade e violência. Já os locais de atração em que foram resgatados os trabalhadores possuem dinamismo produtivo e econômico. Nesses locais há a demanda por trabalhadores com pouca ou nenhuma qualificação profissional ou educação formal para exercer atividades de baixa remuneração.
Legislação
Como medida de prevenção, repressão e punição ao tráfico de pessoas, foi assinado em 2000 o Protocolo de Palermo, criado pela Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional. O texto, constituído por 41 artigos, reúne orientações aos países para enfrentamento e combate ao crime. O Brasil ratificou o protocolo por meio do Decreto nº 5.017, em 2004. O documento define o tráfico humano como sendo o recrutamento, transporte, transferência, abrigo ou recebimento de pessoas, por meio de ameaça ou uso da força, de rapto, de fraude, de engano, do abuso de poder ou de posição de vulnerabilidade. O crime também pode ser caracterizado pela prática de dar ou receber pagamentos ou benefícios para obter o consentimento para uma pessoa ter controle sobre outra pessoa, para o propósito de exploração.
Na legislação brasileira, o crime de tráfico de pessoas abrangia apenas a exploração sexual. Só em 2016 foram incluídas outras modalidades, após os trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito sobre o Tráfico de Pessoas, que funcionou no Senado entre 2011 e 2012. O relatório final da CPI mostrou que o Brasil aparece na rota do tráfico humano, tanto como origem quanto como destino final. Foram identificadas 110 rotas de tráfico interno e 131 de tráfico internacional, sendo a maioria na região Norte, onde se localiza a maior parte das fronteiras internacionais. As ações da CPI resultaram na Lei 13.344, de 2016, que incluiu na legislação novas modalidades do crime: trabalho análogo à escravidão, servidão, adoção ilegal e remoção de órgãos e tecidos.
Ainda há normas a serem aperfeiçoadas. O senador Magno Malta (PL-ES) propôs neste ano o PL 1.668/2023, que permite o confisco de bens utilizados por acusados nos crimes de tráfico de criança ou adolescente ou contra a liberdade e dignidade sexual deles. Pela proposta, esses bens podem ser revertidos em indenização à vítima ou ao Fundo dos Direitos da Criança e do Adolescente do estado em que foi cometido o crime. O intuito do projeto ao alterar é coibir pessoas ou grupos que praticam esses crimes com o objetivo de obter lucro.
— A proposta do PL busca endurecer as penalidades e desarticular as redes de pedofilia, visando à proteção dos direitos e da dignidade das vítimas envolvidas nesses crimes — defende o senador.
O projeto foi criado com base nas conclusões da CPI dos Maus-tratos, instalada no Senado em 2017 e presidida por Magno Malta. O senador conta que a comissão identificou a atuação de uma verdadeira máfia da pedofilia no país, com estrutura e organização sofisticadas.
— Só uma legislação específica para desmobilizar essas organizações criminosas, confiscando os bens e valores utilizados ou obtidos com esses crimes. A ideia é combater o comércio, a distribuição e o armazenamento de material pornográfico envolvendo crianças e adolescentes, que têm se tornado cada vez mais frequentes com o avanço da internet — explica.
A CPI apresentou 33 projetos de lei em 2018. As propostas tratavam de temas como fornecimento de atendimento psicológico e educação emocional no currículo escolar; aumento de punição para abusos praticados por profissionais e pessoas responsáveis por menores; e a proibição da entrada de crianças e adolescentes em bailes funk, ou em qualquer outro evento em que haja o livre fornecimento de bebidas alcoólicas.
Crime hediondo
Também tramita no Senado o PL 2.562/2021, de autoria da ex-senadora Nilda Gondim (MDP-PB), que propõe a inclusão no rol dos crimes hediondos o conteúdo previsto no artigo 239 do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA – Lei 8.069, de 1990). O estatuto tipifica como crime a conduta de promover ou auxiliar o envio ilegal de criança ou adolescente para o exterior, principalmente quando envolve a obtenção de lucro.
“Propomos, com o presente projeto de lei, que os crimes mais graves envolvendo a infância e a juventude como vítimas passem a constar do rol dos crimes hediondos. A exploração da prostituição infantil ou a comercialização de fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente não podem mais serem tratados como crimes comuns, que permitem toda a sorte de benefícios aos condenados”, diz Nilda Gondim, na justificativa do PL 2.562/2021.
O relator do projeto, senador Paulo Paim (PT-RS), conta que a Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072, de 1990) surgiu como uma resposta aos crimes que causam repulsa da sociedade.
— O projeto vem para definir os crimes praticados contra crianças e adolescentes previstos nos referidos artigos do ECA como hediondos, ou seja, crimes hediondos significam que não há prisão provisória, está vetado o direito a indulto, anistia ou graça e é inafiançável.
Presidente da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) do Senado, Paim considera o tráfico humano uma das formas mais graves de violação dos direitos humanos. Os crimes contra a humanidade ferem princípios fundamentais e de grupos, indo contra os direitos à liberdade, à dignidade, ao trabalho digno e justo, e à vida. O senador explica que todas as denúncias sobre isso que chegam até à CDH são apuradas e, para muitas delas, são feitas diligências que depois são encaminhadas aos órgãos competentes.
— O tráfico de pessoas é um crime bárbaro, pois vem seguido de muita violência em forma de ameaça, uso da força, abuso de poder com pessoas geralmente em condições de vulnerabilidade. Esse crime carrega junto a exploração sexual de crianças e adolescentes, o trabalho infantil e o trabalho escravo — alerta Paim.
Liberdade
Pelo país, algumas ações tentam alertar a população sobre a presença e o risco do tráfico de pessoas. O Ministério Público do Trabalho promove o projeto “Liberdade no Ar”, lançado em 2020 com a participação de organizações nacionais e internacionais como o UNODC, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a Organização Internacional para as Migrações (OIM), a Associação Brasileira de Defesa da Mulher, da Criança e da Juventude (ASBRAD) e a Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC).
— O projeto busca divulgar informações sobre tráfico de pessoas para trabalho em condição análoga a de escravo, conscientizando dos trabalhadores do setor de transporte aéreo e rodoviário e a comunidade, por meio de vídeos tanto nos terminais de rodoviária e aeroportos, como pela internet — explica Andrea Gondim, procuradora que gerencia o projeto.
Um dos resultados da iniciativa foi a produção de uma web série com entrevistas de especialistas sobre o tema tratando dos principais desafios no enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil. Os vídeos publicados no canal da ASBRAD e na TVMPT já foram reproduzidos em países como Moçambique, Portugal, Espanha, Uruguai, Estados Unidos, Argentina e Venezuela.
Fonte: Agência Senado