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“Todos os instrumentos da economia verde obedecem à mesma lógica perversa da financeirização”


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O de­bate am­bi­ental tem tudo para ser es­ca­mo­teado ou re­petir ve­lhas ter­gi­ver­sa­ções sobre de­sen­vol­vi­mento e sus­ten­ta­bi­li­dade no ce­nário elei­toral que co­meça a se aquecer. Mais ainda no que tange a cha­mada eco­nomia verde, con­ceito ainda novo para o pú­blico. Co­lu­nista do Cor­reio da Ci­da­dania, a eco­no­mista e ati­vista so­ci­o­am­bi­ental Amyra El Kha­lili acaba de lançar a 2ª edição do e-book Com­mo­di­ties Am­bi­en­tais em Missão de Paz – Novo mo­delo econô­mico para Amé­rica La­tina e o Ca­ribe. Como até o tí­tulo su­gere, não se trata de um de­bate de fácil apre­ensão. Nesta en­tre­vista, tra­tamos de trazer tais con­ceitos à luz.  

“As com­mo­di­ties am­bi­en­tais são o oposto das com­mo­di­ties con­ven­ci­o­nais por fa­zerem con­tra­ponto aos cri­té­rios de pa­dro­ni­zação e co­mer­ci­a­li­zação, ao ques­tioná-los tec­ni­ca­mente con­fron­tando os nú­meros e es­ta­tís­ticas das grandes es­calas de pro­dução, in­cluindo as va­riá­veis so­ciais e am­bi­en­tais e prin­ci­pal­mente as rein­vin­di­ca­ções dos que são os le­gí­timos re­pre­sen­tantes de sua ‘emi­nência parda, O Mer­cado’, ou seja, os pro­du­tores e con­su­mi­dores que somos todos e todas nós”, ex­plicou.

Na ex­tensa en­tre­vista, Amyra El Kha­lili também cri­tica os li­mites do dis­curso am­bi­en­ta­lista ma­jo­ri­tário, pois em sua visão co­loca motes de fácil as­si­mi­lação – como “água não é mer­ca­doria” – acima da aná­lise do mo­delo de pro­dução e con­sumo no qual es­tamos todos in­se­ridos. Do outro lado, trata de pre­cisar as di­fe­renças entre mer­cados fi­nan­cei­ri­zados e oli­go­po­li­zados da­queles que en­volvem pro­du­tores e con­su­mi­dores de pe­quena es­cala, em nome de quem sempre se es­ti­mulam os ins­tru­mentos de eco­nomia sus­ten­tável, mi­ti­gação de danos, com­pen­sa­ções am­bi­en­tais etc.  ?

“Uma coisa é fi­nan­ciar um pro­jeto de mi­ti­gação (re­dução de emis­sões), a outra é emitir tí­tulos para as Bolsas ou ne­go­ciar com­mo­di­ties nas Bolsas. São coisas di­fe­rentes, têm fun­ções di­fe­rentes; não de­ve­riam se fundir e muito menos se con­fundir. Ocorre que com os ins­tru­mentos da eco­nomia verde ci­tados an­te­ri­or­mente, estão fun­dindo e con­fun­dindo pro­po­si­ta­da­mente os con­tratos em uma ar­qui­te­tura fi­nan­ceira pe­ri­gosa. Mi­tigar não ocorre da noite para o dia, leva anos e anos, e muitos que estão as­si­nando con­tratos, acordos e pro­jetos nem es­tarão vivos para saber seus re­sul­tados, com­pro­me­tendo assim o pa­trimônio am­bi­ental e cul­tural das pre­sentes e fu­turas ge­ra­ções, como é o caso das terras dos povos in­dí­genas e tra­di­ci­o­nais”, ana­lisou.

A en­tre­vista com­pleta com Amyra El Kha­lili pode ser lida a se­guir. 

Cor­reio da Ci­da­dania: Co­me­çando pelo tí­tulo do livro, o que são com­mo­di­ties am­bi­en­tais e quais suas fi­na­li­dades na eco­nomia atual?

Amyra El Kha­lili: Pri­mei­ra­mente, é pre­ciso com­pre­ender o que são “com­mo­di­ties” para de­pois de­fi­nirmos o que são “com­mo­di­ties am­bi­en­tais”. Com­mo­di­ties são mer­ca­do­rias pa­dro­ni­zadas para compra e venda que adotam cri­té­rios in­ter­na­ci­o­nais de co­mer­ci­a­li­zação em mer­cados or­ga­ni­zados (bur­sá­teis, ou seja, de Bolsas de Mer­ca­do­rias e de Fu­turos). Hoje clas­si­fi­camos as pro­du­ções con­ven­ci­o­nais em com­mo­di­ties agro­pe­cuá­rias (soja, milho, café, boi, cana, cacau, açúcar etc.) e com­mo­di­ties mi­ne­rais (pe­tróleo, gás, ouro, prata, cobre, ferro etc.). 

Foi jus­ta­mente com o ob­je­tivo de ques­ti­onar como se dão esses “cri­té­rios” de pa­dro­ni­zação e seu modus ope­randi que passei a es­tudar o binômio “água e energia” e cu­nhei a ex­pressão “com­mo­di­ties am­bi­en­tais”. Fui ope­ra­dora de com­mo­di­ties e de fu­turos por mais de duas dé­cadas, treinei e ca­pa­citei ope­ra­dores para as cor­re­toras, passei a ser es­tra­te­gista em en­ge­nharia fi­nan­ceira, es­tru­turei e montei quatro cor­re­toras as­so­ci­adas à Bolsa de Mer­ca­do­rias & de Fu­turos (an­tiga BM&F), na dé­cada de 90 ne­go­ciava duas to­ne­ladas de ouro por dia nos mer­cados spot (à vista) e de­ri­va­tivos (fu­turos) até chegar à con­dição de con­sul­tora da BM&F as­ses­so­rando-a na im­plan­tação de ins­tru­mentos econô­mico-fi­nan­ceiros, como, por exemplo, o con­trato fu­turo de soja em grão a granel. Fiz a rota da soja no Brasil para o lan­ça­mento deste con­trato fu­turo de soja. Como co­nheço essa en­gre­nagem por dentro, sei se­parar pro­dução de fi­nanças como também iden­ti­ficar quando pro­dução e fi­nanças se “fundem e con­fundem”. 

As com­mo­di­ties am­bi­en­tais são o oposto das com­mo­di­ties con­ven­ci­o­nais por fa­zerem con­tra­ponto aos cri­té­rios de pa­dro­ni­zação e co­mer­ci­a­li­zação, ao ques­tioná-los tec­ni­ca­mente con­fron­tando os nú­meros e es­ta­tís­ticas das grandes es­calas de pro­dução, in­cluindo as va­riá­veis so­ciais e am­bi­en­tais e prin­ci­pal­mente as rein­vin­di­ca­ções dos que são os le­gí­timos re­pre­sen­tantes de sua “emi­nência parda, O Mer­cado”, ou seja, os pro­du­tores e con­su­mi­dores que somos todos e todas nós, pa­ga­dores de im­postos e taxas, além de pa­garmos também as exor­bi­tantes taxas de juros pra­ti­cadas no Brasil quando re­cor­remos a em­prés­timos e fi­nan­ci­a­mentos. 

Assim sendo as “com­mo­di­ties am­bi­en­tais” são mer­ca­do­rias ori­gi­ná­rias de re­cursos na­tu­rais, pro­du­zidas em con­di­ções sus­ten­tá­veis, e cons­ti­tuem os in­sumos vi­tais para a in­dús­tria e a agri­cul­tura. Estes re­cursos na­tu­rais se di­videm em sete ma­trizes: 1. água; 2. energia, 3. bi­o­di­ver­si­dade; 4. flo­resta; 5. mi­nério; 6. re­ci­clagem; 7. re­dução de emis­sões po­lu­entes (no solo, na água e no ar). As com­mo­di­ties am­bi­en­tais estão sempre con­ju­gadas a ser­viços so­ci­o­am­bi­en­tais – eco­tu­rismo, tu­rismo in­te­grado, cul­tura e sa­beres, edu­cação, in­for­mação, co­mu­ni­cação, saúde, ci­ência, pes­quisa e his­tória, entre ou­tras va­riá­veis que não são con­si­de­radas nas com­mo­di­ties con­ven­ci­o­nais. 

En­quanto as com­mo­di­ties con­ven­ci­o­nais (agro­pe­cuá­rias e mi­ne­rais) se con­cen­tram em al­guns poucos pro­dutos da pauta de ex­por­tação com es­calas de pro­dução, com alta com­pe­ti­vi­dade e tec­no­logia de ponta (trans­genia, na­no­tec­no­logia, bi­o­logia sin­té­tica, ge­o­en­ge­nharia etc.) nas com­mo­di­ties am­bi­en­tais de­sen­vol­vemos cri­té­rios de pro­dução al­ter­na­tiva como a agro­e­co­logia, a or­gâ­nica, a per­ma­cul­tura, a bi­o­di­nâ­mica, a agri­cul­tura de sub­sis­tência con­sor­ciada com pes­quisa de fauna e flora, como as plantas me­di­ci­nais, exó­ticas e em ex­tinção. Exem­pli­fico a pes­quisa com o banco de ger­mo­plasma do bioma ma­ca­ro­nésia (misto de bioma amazô­nico com mata atlân­tica). 

É o caso da se­mente de linho e das tin­turas res­ga­tadas pelo banco de ger­mo­plasma para bor­dados tra­di­ci­o­nais da Ilha da Ma­deira em Por­tugal que foram clo­nados pelos chi­neses e in­dus­tri­a­li­zados. O mer­cado foi inun­dado por fal­si­fi­cação chi­nesa dos bor­dados da Ilha da Ma­deira. Re­sul­tado: as bor­da­deiras já não querem mais en­sinar suas fi­lhas o ofício por serem ex­plo­radas pela in­dus­tri­a­li­zação e por em­pre­sá­rios que ex­portam seus bor­dados para bou­ti­ques e pagam uma mi­séria para as bor­da­deiras. 

Outra con­tra­dição: en­quanto na Amazônia com­ba­temos a bi­o­pi­ra­taria, nos países do norte pes­quisam as se­mentes e es­pé­cies para re­cu­perar o que de­gra­daram e des­ma­taram. São essas con­tra­di­ções, seus pa­ra­doxos e re­fle­xões entre pro­blemas e so­lu­ções que es­tamos de­ba­tendo e ana­li­sando ao cons­truir co­le­ti­va­mente o con­ceito “com­mo­di­ties am­bi­en­tais”. As com­mo­di­ties am­bi­en­tais são como um es­pelho di­ante da face do sis­tema fi­nan­ceiro para que pos­samos en­xergar em tempos de trevas al­guma luz no fim do túnel, pro­pondo um mo­delo de tran­sição à eco­nomia de mer­cado em sua fase ne­o­li­beral (neo = novo; li­beral = livre mer­cado).

Ora se vi­vemos em uma eco­nomia onde quem co­manda é o livre mer­cado, por que so­mente os de­ten­tores de ca­pital podem de­cidir sobre o que, como e de que forma de­vemos pro­duzir e con­sumir? Se é livre para os ca­pi­ta­li­zados, por que deles somos re­féns e es­tamos “presos”? De­vemos ser eter­na­mente “es­cravos do livre mer­cado”?

Se somos os que pro­duzem, os que con­somem, os que pagam im­postos, taxas e os juros, por que temos que nos su­bor­dinar às re­gras de pa­dro­ni­zação e co­mer­ci­a­li­zação in­ter­na­ci­o­nais, fora de nossa re­a­li­dade e ainda aceitar pas­si­va­mente que esse mer­cado se “au­tor­re­gule”? 

No Brasil sa­bemos que o le­gis­lador é ques­ti­o­nável e muitas vezes in­justo; é quando a lei be­ne­ficia o réu (o de­gra­dador) e pe­na­liza a ví­tima (o am­bi­ente). E quando é con­ve­ni­ente para bancos e cor­po­ra­ções, pre­va­lece o ne­go­ciado sobre o le­gis­lado. 

Cor­reio da Ci­da­dania: Con­si­dera a ex­plo­ração das com­mo­di­ties am­bi­en­tais sus­ten­tável? Qual a “se­pa­ração a se fazer do joio do trigo”, como a obra propõe?

Amyra El Kha­lili: As ma­trizes das com­mo­di­ties am­bi­en­tais são re­cursos na­tu­rais e pro­cessos re­no­vá­veis e não re­no­vá­veis: a água, a energia, a bi­o­di­ver­si­dade, a flo­resta, o mi­nério, a re­ci­clagem, a re­dução de emis­sões de po­lu­entes (no solo, na água e no ar). Não são mer­ca­do­rias, não podem ser “co­mo­di­ti­zadas” por se tra­tarem de bens di­fusos, de uso comum do povo. 

As com­mo­di­ties am­bi­en­tais são as mer­ca­do­rias que se ori­ginam destas ma­trizes, por exemplo, o doce de goiaba da pro­du­tora de doces de Campos dos Goy­ta­cazes (RJ). A goi­a­beira é ma­triz. A goiaba é ma­téria prima, o fruto. A mer­ca­doria é o doce de goiaba. A pres­ta­dora de ser­viços é a mu­lher do­ceira de Campos dos Goy­ta­cazes que aprendeu com a índia Goy­tacá a re­ceita tra­di­ci­onal para fazer goi­a­bada cascão. A mu­lher do­ceira se or­ga­niza em as­so­ci­ação e co­o­pe­ra­tiva. A água e a energia como com­mo­dity am­bi­ental, neste caso, é o in­sumo usado pela mu­lher do­ceira para pro­duzir o doce de goiaba. Torna-se com­mo­dity am­bi­ental quando essa mu­lher do­ceira cuida da bacia hi­dro­grá­fica e tra­balha com energia re­no­vável e/ou ma­xi­mi­zando o uso da água e da energia para poder pro­duzir seu doce. É quando água e energia são cap­tadas da na­tu­reza e passam para a ca­deia pro­du­tiva. 

Nas com­mo­di­ties am­bi­en­tais tra­ba­lhamos as sete ma­trizes in­te­gradas ao apren­dermos como fun­ciona um ecos­sis­tema. Na na­tu­reza não há se­pa­ração entre as ma­trizes porque a na­tu­reza está in­te­grada. Se se­pa­ramos em sete ma­trizes é para poder es­tudar e ana­lisar os im­pactos so­ci­o­e­conô­micos de seu uso jus­ta­mente para não per­mitir a ex­plo­ração de­sen­freada e nem o ex­tra­ti­vismo in­dus­tri­a­li­zado como ocorreu no de­sastre am­bi­ental com a mi­ne­ração em Ma­riana, Minas Ge­rais. 

Es­tamos fa­lando de com­mo­dity, ou seja, de mer­cado or­ga­ni­zado e não de ex­tra­ti­vismo pura e sim­ples­mente (sem or­ga­ni­zação so­cial). Com­mo­dity não se dá na in­for­ma­li­dade e nem é pos­sível dizer que qual­quer coisa vira com­mo­dity na ile­ga­li­dade e sem cri­tério de pa­dro­ni­zação. Agora mer­ca­doria pode ser lí­cita tanto quanto ilí­cita. A lista de coisas ilí­citas que se tornam mer­ca­do­rias é enorme, dá pano pra burca!

Na eco­nomia verde chamam os pro­cessos de ser­viços ecos­sis­tê­micos e am­bi­en­tais. Ocorre que também não são “ser­viços”, já que a na­tu­reza não está a ser­viço dos hu­manos, não cobra por seus tra­ba­lhos. No con­ceito “com­mo­di­ties am­bi­en­tais” es­tamos fa­lando de “be­ne­fí­cios pro­vi­den­ciais” e não de ser­viços am­bi­en­tais. 

Se al­guém presta algum ser­viço nessa equação, é a bor­da­deira da Ilha da Ma­deira, a cos­tu­reira, o ex­tra­ti­vista, a que­bra­deira de coco de ba­baçu, o ri­bei­rinho que pesca o peixe, a do­ceira que re­tira a goiaba man­tendo a goi­a­beira em pé e plan­tando uma muda de goi­a­beira ao lado da ár­vore que ex­traiu o fruto, os povos in­dí­genas e tra­di­ci­o­nais que pro­tegem e guardam as flo­restas e as águas. Estes, sim, prestam ser­viços e de­ve­riam ser de­vi­da­mente re­mu­ne­rados por manter os “be­ne­fí­cios pro­vi­den­ciais” que a na­tu­reza nos pro­por­ciona. Eles e elas tra­ba­lham para que te­nhamos água em quan­ti­dade e qua­li­dade, assim como o ar, a terra e o mar.

Cor­reio da Ci­da­dania: E os ver­da­deiros pres­ta­dores de ser­viço estão sendo ex­cluídos dos be­ne­fí­cios econô­micos?

Amyra El Kha­lili: A aca­demia e as grandes ONGs têm por há­bito criar novas ex­pres­sões e pa­la­vras-chaves para des­viar a atenção do prin­cipal, tanto os que de­fendem o ne­o­li­be­ra­lismo quanto os que o cri­ticam. É muita ter­gi­ver­sação po­lí­tica, dis­torção e en­vi­e­sa­mento das ban­deiras e justas causas que de­fen­demos e dis­cu­timos no mundo real. Mas o povo não é bobo. É bom, mas não é bobo. Como disse uma li­de­rança Ja­mi­nawá “ca­pi­vara é ca­pi­vara, paca é paca, cobra é cobra e nem vem com esses nomes com­pli­cados que a gente não sabe o que é, pra gente as coisas são sim­ples”.

Se usamos a pa­lavra-ex­pressão “com­mo­di­ties” é porque do­mi­namos o as­sunto e es­tamos re­ba­tendo ar­gu­mentos frouxos e in­con­sis­tentes. Der­ru­bando mitos que se apre­sentam como ver­dades ab­so­lutas e in­ques­ti­o­ná­veis. Quem nos ouve e nos lê com atenção en­tende per­fei­ta­mente o que es­tamos fa­lando. 

Também nunca soube de um in­ves­tidor que co­lo­casse di­nheiro em algo que não en­ten­desse, pelo con­trário, se o fazem sem en­tender é porque estão sendo en­ga­nados. En­ganar pes­soas é es­te­li­o­nato (abuso da boa fé do in­di­víduo) e se tiver pa­péis com pa­la­vras-ex­pres­sões en­ro­ladas, cer­ti­fi­ca­dores du­vi­dosos, au­di­tores in­com­pe­tentes (na me­lhor das hi­pó­teses) é fraude. Se tiver juros im­pra­ti­cá­veis e es­cor­chantes, é agi­o­tagem. Daí a coisa sai da es­fera, do campo téc­nico e ide­o­ló­gico e passa à con­dição de ju­rí­dico-econô­mico. Nessa úl­tima hi­pó­tese, é crime. 

Por­tanto, es­tamos en­trando no ter­ri­tório do di­reito penal, mais es­pe­ci­fi­ca­mente no di­reito am­bi­ental e no di­reito hu­mano sem perder de vista que es­tamos tra­tando também com di­reito econô­mico, tri­bu­tário e fiscal. É ma­téria mul­ti­dis­ci­plinar e não dá para uma única mortal se rogar de dou­tora no tema. Eu não me atre­veria a tanta pre­po­tência!

Senão ve­jamos, quando pri­va­ti­zaram a Vale do Rio Doce o que ven­deram? Uma em­presa es­tatal? Não, ven­deram as ri­quezas do sub­solo, o bem pú­blico, o mi­nério ex­plo­rado pela Vale do Rio Doce que passou a ter aci­o­nistas es­tran­geiros e se sub­meter às re­gras de mer­cado (ou a falta delas!). Aqui estou fa­lando de mer­cado fi­nan­ceiro e não do mer­cado como um todo que somos todos nós, pro­du­tores e con­su­mi­dores de bens e ser­viços.

Quando lei­lo­aram o pré-sal, en­tre­garam para ex­plo­ração de ou­tros países em ter­ri­tório bra­si­leiro o bem comum do povo, o pe­tróleo. Eu res­pondo sua per­gunta com outra per­gunta: é viável? 

To­memos como fato a re­cente greve dos ca­mi­nho­neiros. Ao in­de­xarem os preços dos com­bus­tí­veis ao preço pra­ti­cado nas bolsas in­ter­na­ci­o­nais, as bombas de ga­so­lina e ál­cool nos postos pas­saram à con­dição de cor­re­tores e cam­bistas, com re­a­justes de preços diá­rios e ines­pe­rados. 

É im­pos­sível con­viver com uma si­tu­ação dessas quando nem os ca­mi­nho­neiros con­se­guem saber o que estão pa­gando para con­ti­nu­arem na es­trada; quando nem seus sa­lá­rios estão ga­ran­tidos e ainda correm riscos de vida com as­saltos e pés­simas con­di­ções de tra­balho com a frota su­ca­teada ou como vão pagar as pres­ta­ções dos ca­mi­nhões novos que com­praram.

Quando pro­pomos “as com­mo­di­ties am­bi­en­tais” es­tamos fa­lando de al­ter­na­tivas de ge­ração de em­prego e renda para os que vivem da mi­ne­ração, da ex­plo­ração de­sen­freada do bem comum, pois os ar­gu­mentos das mi­ne­ra­doras e do agro­ne­gócio são de que tal ati­vi­dade ex­tra­ti­vista gera em­prego e renda, traz di­visas (di­nheiro de in­ves­ti­dores es­tran­geiros) para o país. Mas sa­bemos que as em­presas multi e trans­na­ci­o­nais que se es­ta­be­lecem no Brasil vêm aqui em busca de in­sumos (água e energia), de ma­téria prima (mi­nério e pro­dutos agro­pe­cuá­rios) e mão de obra ba­rata ou mesmo de graça e es­cra­vi­zada. 

Eles trazem seus fun­ci­o­ná­rios bem pagos do ex­te­rior, al­ta­mente ca­pa­ci­tados fa­lando duas ou mais lín­guas, com mes­trados e dou­to­rados, não con­tratam mão de obra re­gi­onal, ex­ploram o am­bi­ente local com a cum­pli­ci­dade de po­lí­ticos. Assim pri­va­tizam-se os lu­cros e so­ci­a­lizam-se os pre­juízos. 

A pro­fes­sora e eco­no­mista Amyra El Kha­lili

Cor­reio da Ci­da­dania: Nesse sen­tido, em textos no Cor­reio da Ci­da­dania você es­creve pro­vo­ca­ti­va­mente que água, energia e ali­mentos são, sim, mer­ca­doria, a des­peito dos slo­gans mais fa­mosos em mo­vi­mentos so­ciais ou do dis­curso de grupos e par­tidos. Como ex­plicar isso?

Amyra El Kha­lili: Pois digo que é bem o con­trário dessas cam­pa­nhas que vêm de fora para dentro, cu­nhadas por ONGs in­ter­na­ci­o­nais quando a pa­lavra com­mo­di­ties tra­du­zida ao pé da letra sig­ni­fica mer­ca­doria. Que­rendo “pa­dro­nizar as cam­pa­nhas” para que sejam usadas em todos os con­ti­nentes, as ONGs co­metem um equí­voco e ali­mentam mais ainda a con­fusão entre pro­dução e fi­nanças. Eles fazem a mesma coisa que os co­lo­ni­za­dores que tanto cri­ticam fi­zeram: nos sub­metem a sua voz de co­mando sem nos per­guntar se essas ex­pres­sões nos servem para dizer o que gos­ta­ríamos de dizer. 

Ex­plico: com­mo­di­ties é pa­lavra-ex­pressão uti­li­zada em fi­nanças e podem ser bem mais que sim­ples mer­ca­do­rias, de­pen­dendo de como é usada e em que con­texto está sendo em­pre­gada, como o agro­ne­gócio em suas pro­pa­gandas quando afirma que o Brasil se tornou o maior ex­por­tador de soja com o boom das com­mo­di­ties, tendo os chi­neses com­prando nossa pro­dução, tanto quanto os que dizem que “tudo vai virar com­mo­dity” sem ex­plicar como é pos­sível essa me­ta­mor­fose des­con­si­de­rando que ainda temos uma Cons­ti­tuição Fe­deral com o ar­tigo 225, além do di­reito econô­mico, tri­bu­tário e fiscal. 

Eis a sín­tese do texto: o bem am­bi­ental é de­fi­nido pela Cons­ti­tuição como sendo “de uso comum do povo”, ou seja, não é bem de pro­pri­e­dade pú­blica, mas sim de na­tu­reza di­fusa, razão pela qual nin­guém pode adotar me­didas que im­pli­quem gozar, dispor, fruir do bem am­bi­ental ou des­truí-lo. Ao con­trário, ao bem am­bi­ental, é so­mente con­fe­rido o di­reito de usá-lo, ga­ran­tindo o di­reito das pre­sentes e fu­turas ge­ra­ções.

Estão usando a pa­lavra-ex­pressão com­mo­di­ties de forma en­vi­e­sada, dis­tor­cida e des­con­tex­tu­a­li­zada ou sim­ples­mente jo­gando a pa­lavra-ex­pressão de um lado para outro sem apro­fundar o de­bate que está em curso há dé­cadas, desta forma, des­vi­ando a atenção do prin­cipal e na mai­oria das vezes in­ver­tendo o sen­tido de nossas co­lo­ca­ções, de­mons­trando que não sabem do que estão fa­lando e que des­co­nhecem os gar­galos das ca­deias pro­du­tivas de bens e ser­viços. 

Cor­reio da Ci­da­dania: Mer­can­ti­li­zação da Na­tu­reza?

Amyra El Kha­lili: Desde que o pri­meiro co­lo­ni­zador meteu os pés neste con­ti­nente la­tino-ame­ri­cano ca­ri­benho, a na­tu­reza foi mer­can­ti­li­zada. Es­tamos em outra fase: a da mi­li­ta­ri­zação da na­tu­reza. Sem dú­vida é in­ques­ti­o­nável que o ob­je­tivo da “mi­li­ta­ri­zação” é para se­guir mer­can­ti­li­zando tudo e qual­quer coisa, da na­tu­reza a vida – aliás, seria hi­po­crisia dizer que esta ainda não foi mer­can­ti­li­zada. Já se vão mais de 500 anos de co­lo­ni­zação mer­cantil e nin­guém fez nada. A cada go­verno, seja de di­reita ou es­querda, re­produz-se o mesmo “modus ope­randi”. Pro­feri pa­lestra na sede do BNDES (em 2000) pro­mo­vida pelo go­verno dos EUA a falar sobre o Plano Colômbia, quando jo­garam ve­neno nas plan­ta­ções de coca, pa­poulas, ma­conha, que além de matar a terra atin­giram a po­pu­lação com graves se­quelas.

Al­guém citou essa fala nos re­la­tó­rios? Nada! O que os jor­na­listas es­cre­veram na “grande im­prensa” foi apenas o que in­te­res­sava ao mer­cado de car­bono, mas não es­cre­veram o que disse sobre a ne­ces­si­dade de criar al­ter­na­tivas agro­e­co­ló­gicas para os po­bres cam­pe­sinos (as) que plantam coca, ma­conha e pa­poulas (BERNA, Vilmar 2018).

Desta forma sou so­li­dária com as pro­postas do “Co­mu­ni­cado do Com­po­nente da FARC no Pro­grama Na­ci­onal In­te­gral de Subs­ti­tuição de Cul­tivos de Uso Ilí­cito (PNIS)”. Se que­remos paz nas flo­restas, nos campos, nas mon­ta­nhas e nas águas, temos de ca­mi­nhar para as so­lu­ções dos pro­blemas e não “pro­ble­ma­tizar mais e mais jo­gando ga­so­lina onde já há in­cêndio”.

Como é pos­sível ex­plicar para Dona Maria, para Seu João, que ali­mento não é mer­ca­doria se eles têm de com­prar na feira, no su­per­mer­cado, na pa­daria, no açougue a co­mida dos fi­lhos? Como é pos­sível ex­plicar para minha mãe que água e energia não são mer­ca­do­rias se as contas de água, luz, gás e com­bus­tível estão pela hora da morte? 

Será que dá para a gente usar esse ar­gu­mento com as Em­presas-Es­tados que nos abas­tecem com água, luz e gás, que não são mer­ca­do­rias? Que o Es­tado tem de nos prover de ser­viços que ja­mais de­ve­riam ser mer­can­ti­li­zados como saúde, edu­cação, se­gu­rança pú­blica, pre­vi­dência, entre ou­tros que pa­gamos com im­postos e taxas na hora que temos que quitar nossas dí­vidas? O fun­ci­o­nário que me atende no guichê pode me isentar desses pa­ga­mentos apenas com tal ar­gu­mento?

Penso que as afir­ma­ções “água, energia e ali­mento não são mer­ca­doria” não ex­plicam nada para nin­guém, a não ser para os fun­ci­o­ná­rios pú­blicos e os da aca­demia que têm seus sa­lá­rios ga­ran­tidos no fim do mês e podem dispor de bolsas de pes­quisas para fi­carem es­tu­dando e pes­qui­sando, com des­pesas de vi­a­gens pagas pelo Es­tado ou por ins­ti­tui­ções para par­ti­ci­parem de se­mi­ná­rios, reu­niões, en­con­tros e pa­les­tras, en­quanto a grande mai­oria, na qual me in­cluo, mal con­segue manter seus em­pregos com seus di­plomas de curso su­pe­rior e al­gumas es­pe­ci­a­li­za­ções. E veja você que não fi­quei rica ne­go­ci­ando com­mo­di­ties nas Bolsas. Sigo em ca­ra­vana dando aulas em co­mu­ni­dades po­bres, muitas vezes tra­balho sem re­ceber ho­no­rá­rios. 

De­vemos sem dú­vida al­guma dis­cutir a qua­li­dade do que pro­du­zimos e con­su­mimos, se o que co­memos nos ali­menta ou se o que pa­gamos tem preço justo, mas de­vemos evitar con­fundir mais ainda o que já está con­fuso e obs­curo. Enfim, para quem es­tamos fa­lando e com quem es­tamos di­a­lo­gando? Essa é a per­gunta que não quer calar.

Para os sim­ples mor­tais, ga­linha é ga­linha, paca é paca, como diz sa­bi­a­mente a li­de­rança Ja­mi­nawá do Acre.

Cor­reio da Ci­da­dania: Você es­ta­be­lece diá­logo di­reto com o que chama de “emi­nência parda”, o mer­cado. Qual o grau de in­ci­dência deste ente nas po­lí­ticas am­bi­en­tais e como você des­creve os ins­tru­mentos fi­nan­ceiros por ele de­sen­vol­vidos como in­cen­tivos de pre­ser­vação am­bi­ental?

Amyra El Kha­lili: Vamos iden­ti­ficar quem é sua emi­nência parda: o Mer­cado. Faço essa pro­vo­cação de­pois de anos e anos ou­vindo o sis­tema fi­nan­ceiro falar em meu nome sem me per­guntar o que eu penso ou o que eu gos­taria de dizer. Como ope­ra­dora da Bolsa re­petia todos os dias: o mer­cado subiu, o mer­cado caiu, o mer­cado está ner­voso, o mer­cado está pa­rado. E a gente nem se dá conta do que está di­zendo de tão con­di­ci­o­nados que fi­camos nesse uni­verso.

O mer­cado a que me re­firo no e-book “Com­mo­di­ties am­bi­en­tais em missão de paz”, como disse an­te­ri­or­mente, somos todos nós que pro­du­zimos e con­su­mimos, e não o mer­cado fi­nan­ceiro, que ab­so­lu­ta­mente não produz nada e tem so­bre­vi­vido como pa­ra­sita de ren­tismo e da es­pe­cu­lação. 

O co­lega La­dislau Dowbor es­cla­rece esse im­bró­glio com rigor ci­en­tí­fico em seu in­dis­pen­sável livro “A era do ca­pital im­pro­du­tivo”. La­dislau também co­or­dena um grupo de es­tudos sobre o tema “ fi­nan­cei­ri­zação” ao qual temos con­tri­buído e apoiado por con­si­de­rarmos im­por­tante a ini­ci­a­tiva de or­ga­nizar uma frente que faça con­tra­ponto ao mo­delo ne­o­li­beral glo­ba­li­zado. 

O atual sis­tema fi­nan­ceiro é que está de­ter­mi­nando o que sua emi­nência parda, o Mer­cado, deve pro­duzir e con­sumir. Por isso mesmo, se sentem à von­tade de falar em nome de sua emi­nência parda, o mer­cado, de forma ge­ne­ra­li­zada, sem se­parar mer­cado fi­nan­ceiro de mer­cado de tra­balho, de mer­cado al­ter­na­tivo, de mer­cado de pro­dução, de mer­cado de bens e ser­viços. Há mer­cados e mer­cados e dis­tin­guir pro­dução de fi­nanças é o pri­meiro passo para não con­fun­dirmos trigo com joio. 

Por outro lado, acon­tece também que a eco­nomia que vi­vemos se es­ta­be­leceu (es­ta­blish­ment) no pa­ra­digma me­ca­ni­cista onde tudo tende a ser mer­can­ti­li­zado, com es­calas de pro­dução uti­li­tá­rias e não como pro­dução com valor de uso so­cial. É evi­dente que qual­quer ins­tru­mento econô­mico-fi­nan­ceiro que seja pen­sado nesse mesmo pa­ra­digma será usado para con­cen­trar mais ainda o ca­pital ren­tista (que vive de juros e não de pro­dução) do que re­al­mente ser usado para efe­ti­va­mente fi­nan­ciar a pro­dução. E con­se­quen­te­mente acabam sendo usados para fi­nan­cei­rizar (en­di­vidar) os que pro­duzem bens e ser­viços. 

Por­tanto, as crí­ticas aos ins­tru­mentos econô­micos da eco­nomia verde, como Cré­ditos de Car­bono, REDD – Re­dução de Emis­sões por Des­ma­ta­mento e De­gra­dação, Cré­ditos de Eflu­entes, Cré­ditos de Com­pen­sação, Pa­ga­mentos por Ser­viços Am­bi­en­tais, Pa­ga­mentos por Ser­viços Ecos­sis­tê­micos etc. são per­ti­nentes e me­recem atenção. Prin­ci­pal­mente que ór­gãos fis­ca­li­za­dores e re­gu­la­dores, bem como o Mi­nis­tério Pú­blico, apurem as de­nún­cias que estão sendo re­gis­tradas em nossas redes de in­for­mação. 

No en­tanto, não po­demos ge­ne­ra­lizar e con­fundir gente séria e bem in­ten­ci­o­nada com opor­tu­nistas, es­pe­cu­la­dores e cri­mi­nosos. Muitos acre­ditam in­gênua e equi­vo­ca­da­mente que tais ins­tru­mentos fi­nan­ci­arão a tran­sição de uma eco­nomia marrom para uma eco­nomia verde, e não estão com­pre­en­dendo as ar­ma­di­lhas fi­nan­ceiras e ju­rí­dicas en­gen­dradas com ope­ra­ções que en­volvem ques­tões de ordem ge­o­po­lí­tica ca­sadas com terras e re­cursos na­tu­rais es­tra­té­gicos, re­gu­lados e le­gis­lados com a cum­pli­ci­dade de po­lí­ticos para a im­ple­men­tação destes pe­ri­gosos con­tratos fi­nan­ceiros e mer­cantis. É o pa­cote que vem da cha­mada eco­nomia verde ou eco­nomia de baixo car­bono. 

Cor­reio da Ci­da­dania: Ainda sobre tais ins­tru­mentos, que pensa de cré­ditos de car­bono e ou­tras mo­da­li­dades de com­pen­sação am­bi­ental?

Amyra El Kha­lili: Es­crevi o ar­tigo “O que são cré­ditos de car­bono?” em 1998 (pre­sente no e-book) para ex­plicar a di­fe­rença entre tí­tulos bur­sá­teis (ne­go­ci­ados em bolsas) e com­mo­di­ties (mer­ca­doria pa­dro­ni­zada) e es­cla­recer que “cré­ditos de car­bono” não podem ser “com­mo­di­ties am­bi­en­tais”.

Ques­tiono se há emissão de um tí­tulo para que e para quem ele de­veria servir? Se é um cré­dito seja do que for, como se pode usar-aplicar esse cré­dito?
Pri­mei­ra­mente, car­bono não pode ser con­si­de­rado mer­ca­doria se a in­tenção é re­duzir as emis­sões. Não existe conta para re­duzir nada no sis­tema fi­nan­ceiro, so­mente para mul­ti­plicar. Con­fundem “se­questro de car­bono” com “cré­ditos de car­bono”. 

Na na­tu­reza, o se­questro de car­bono é a fo­tos­sín­tese. As plantas cap­turam o CO2 para de­pois eli­minar o oxi­gênio. Em fi­nanças não há como fazer essa equação. Ainda mais no mer­cado de com­mo­di­ties que está des­re­gu­la­men­tado e hoje a Chi­cago Board ne­gocia até 100 vezes a mesma saca de soja por ação de es­pe­cu­la­dores e ma­ni­pu­la­dores que nada têm a ver com a ati­vi­dade pro­du­tiva. Tais ações dis­torcem os preços e pre­ju­dicam os fi­nan­ci­a­mentos das la­vouras, con­di­ci­o­nando os agri­cul­tores a com­prarem as tec­no­lo­gias de ponta que os países do norte pa­ten­te­aram, como se­mentes, agro­tó­xicos, quí­micos, má­quinas e equi­pa­mentos. 

Uma coisa é fi­nan­ciar um pro­jeto de mi­ti­gação (re­dução de emis­sões), a outra é emitir tí­tulos para as Bolsas ou ne­go­ciar com­mo­di­ties nas Bolsas. São coisas di­fe­rentes, têm fun­ções di­fe­rentes; não de­ve­riam se fundir e muito menos se con­fundir. Ocorre que com os ins­tru­mentos da eco­nomia verde ci­tados an­te­ri­or­mente, estão fun­dindo e con­fun­dindo pro­po­si­ta­da­mente os con­tratos em uma ar­qui­te­tura fi­nan­ceira pe­ri­gosa. 

Sus­pei­tamos que o fazem para se apro­pri­arem de terras e re­cursos na­tu­rais es­tra­té­gicos (bens co­muns). Com a crise fi­nan­ceira in­ter­na­ci­onal de 2008 após a quebra do Banco Lehman Brothers, os in­ves­ti­mentos que es­tavam no sub­prime (hi­po­tecas de re­si­dên­cias) mi­graram para o que cha­mamos de sub­prime am­bi­ental (hi­po­tecas de terras). 

Como disse, ne­nhum in­ves­tidor co­loca di­nheiro na­quilo que não co­nhece e nem as­sina con­tratos que não en­tende. Ainda mais com con­ta­bi­li­dades com­plexas em con­tratos fi­nan­ceiros e mer­cantis que ne­ces­sa­ri­a­mente devem medir a quan­ti­dade de car­bono se­ques­trado. Como é feita a me­dição? Quem au­dita tal en­ge­nharia?

Se na aca­demia há di­ver­gên­cias do que pode ou não ser “se­ques­trado”, se es­pe­ci­a­listas a todo mo­mento pu­blicam es­tudos e re­la­tó­rios que der­rubam teses e pro­jetos de car­bono, em quem con­fiar ta­manha ta­refa para as­sinar acordos, con­tratos e pro­jetos que en­volvem bi­lhões e ainda ali­enam terras por 30, 40, 50 e até 100 anos?

Mi­tigar não ocorre da noite para o dia, leva anos e anos, e muitos que estão as­si­nando con­tratos, acordos e pro­jetos nem es­tarão vivos para saber seus re­sul­tados, com­pro­me­tendo assim o pa­trimônio am­bi­ental e cul­tural das pre­sentes e fu­turas ge­ra­ções, como é o caso das terras dos povos in­dí­genas e tra­di­ci­o­nais. 

Cor­reio da Ci­da­dania: En­quanto não esse de­bate fica au­sente do co­nhe­ci­mento pú­blico as ex­pe­ri­ên­cias aqui cri­ti­cadas avançam pelo Brasil.

Amyra El Kha­lili: Sim, e não pre­ci­samos ir até lá na Amazônia para ve­ri­ficar: aqui mesmo, em ter­ri­tório pau­lista, as terras dos agri­cul­tores podem ficar em ga­rantia por tantos anos e ali­e­nadas so­mente para re­ce­berem os trocos dos tais “ser­viços am­bi­en­tais e ecos­sis­tê­micos”, seja de se­questro de car­bono ou da gestão das águas de uma re­presa, ca­cho­eira ou rio que passa dentro de uma pro­pri­e­dade ou fa­zenda? Será que não estão co­lo­cando em risco o pa­trimônio pú­blico (como são as terras in­dí­genas e tra­di­ci­o­nais da União) ou pri­vado, como são as terras de meus avós ma­ternos e pa­ternos em Minas Ge­rais e na Pa­les­tina, para re­ce­berem um valor in­sig­ni­fi­cante quando essas terras valem muito mais, não para serem ex­plo­radas à exaustão, mas por nos pro­por­ci­o­narem os “be­ne­fí­cios pro­vi­den­ciais” que nos mantêm vivos, como água, ar e solo? 

Ana­li­sando um con­trato que es­tamos au­di­tando, en­con­tramos a se­guinte cifra: con­tra­taram uma con­sul­tora in­di­vi­dual em ca­pa­ci­tação para plan­tarem hortas co­mu­ni­tá­rias pela mó­dica quantia de R$ 95.000,00 por 15 (quinze) meses; em con­tra­par­tida ofe­re­ceram a uma li­de­rança in­dí­gena o valor de R$ 180.000,00 (para três al­deias) por ano em troca de as­si­narem um con­trato de REDD+. Veja , a con­sul­tora in­di­vi­dual re­cebe pouco mais da me­tade do valor ofe­re­cido para três al­deias. É uma dis­cre­pância ab­surda. Nunca re­ce­bemos essa mó­dica quantia para ca­pa­citar co­mu­ni­dades nos cursos de com­mo­di­ties am­bi­en­tais. Como es­tamos au­di­tando, por se­gredo de jus­tiça não vou re­velar nomes. 

Todos os ins­tru­mentos da eco­nomia verde obe­decem a mesma ló­gica de ou­tros con­tratos fi­nan­ceiros e mer­cantis tanto quanto a ló­gica dos em­prés­timos in­ter­na­ci­o­nais que es­cra­vizam a nossa eco­nomia, tais como os em­prés­timos do FMI, do Banco Mun­dial, dos Bancos Mul­ti­la­te­rais para fi­nan­ci­a­mento de obras pú­blicas, de trans­porte e de sa­ne­a­mento bá­sico. Basta olhar a quan­ti­dade de obras pa­radas cujos in­ves­ti­mentos fi­zeram de es­tradas, tri­lhos e trens um monte de su­cata.

Cor­reio da Ci­da­dania: O que pensa, em li­nhas ge­rais, dos con­ceitos de eco­nomia verde?

Amyra El Kha­lili: Par­ti­ci­pamos de vá­rias frentes que se opõem ao mo­delo econô­mico-fi­nan­ceiro cha­mado “eco­nomia verde”. Somos con­trá­rios aos pro­jetos de “eco­nomia verde” que vêm de cima para baixo e de fora para dentro, como a im­ple­men­tação de uma agenda de venda rá­pida, com ob­je­tivos como le­gislar, dar nú­meros e es­ta­tís­ticas.

Há três prin­ci­pais mer­cados mun­diais ilí­citos: o de armas, o do nar­co­trá­fico e o da bi­o­pi­ra­taria. Esse di­nheiro passa pelo sis­tema fi­nan­ceiro – o ver­da­deiro res­pon­sável pelo fi­nan­ci­a­mento do mer­cado de armas e de todo o apa­rato ge­rador de guerras e mi­sé­rias. De­fen­demos pro­jetos so­ci­o­am­bi­en­tais que, fo­cados na pre­ser­vação e con­ser­vação am­bi­ental, con­tri­buem para a se­gu­rança pú­blica, com­batem as drogas, a vi­o­lência contra a mu­lher, a cri­mi­na­li­dade, a dis­cri­mi­nação ét­nica, ra­cial e re­li­giosa, pro­movem a igual­dade de gê­nero, con­correm para a ge­ração de em­prego, ocu­pação e renda. 

Como al­ter­na­tiva, cons­truímos co­le­ti­va­mente a eco­nomia so­ci­o­am­bi­ental. Di­fe­ren­te­mente da eco­nomia verde, a so­ci­o­am­bi­ental passa por um pro­cesso de con­sulta à base po­pular, de ampla con­sulta pú­blica e su­fi­ci­en­te­mente lenta para ser en­ten­dida. O pro­cesso que ado­tamos é de baixo para cima e de dentro para fora. É, so­bre­tudo, des­vin­cu­lado da agenda de elei­ções. Todo tra­balho de con­sulta e cons­trução co­le­tiva de­mora anos, dadas as di­fi­cul­dades de chegar onde poucos con­se­guem, em re­giões afas­tadas e sem acesso à co­mu­ni­cação, lo­cais ca­rac­te­ri­zados por uma po­pu­lação que ne­ces­sita de as­sis­tência e ori­en­tação sobre im­pactos so­ci­o­am­bi­en­tais

Agimos em duas frentes: pri­meiro, ao ori­entar a res­peito da pro­dução de um pro­jeto econô­mico, fi­nan­ceiro e ju­rí­dico com a mu­dança de pa­ra­digma; se­gundo, ao di­vulgar e pu­blicar re­la­tó­rios pro­du­zidos por for­ma­dores de opi­nião e li­de­ranças que par­ti­ci­param de cursos e ofi­cinas que apli­camos em par­ceria com uni­ver­si­dades, cen­tros de pes­quisas e grupos lo­cais, além de di­vulgar também os re­la­tó­rios de ou­tras frentes que apoi­amos.

Os re­la­tó­rios in­dicam o mapa da re­gião, o perfil da po­pu­lação, as ca­rac­te­rís­ticas do bioma, iden­ti­ficam as po­ten­ci­a­li­dades al­ter­na­tivas da bi­o­di­ver­si­dade, entre ou­tras in­for­ma­ções re­le­vantes. Dessa forma, podem apre­sentar os tipos de pro­blemas a eles co­nec­tados, como o de água con­ta­mi­nada e o do en­fren­ta­mento de vi­o­lência, de drogas, de de­gra­dação am­bi­ental, ex­clusão e de­si­gual­dades so­ciais e propor so­lu­ções. É assim que se ide­a­lizam pro­jetos so­ci­o­am­bi­en­tais e se buscam ma­neiras de vi­a­bi­lizá-los.

Cor­reio da Ci­da­dania: A maior trans­pa­rência sobre os con­ceitos de eco­nomia verde nos le­varia a ob­servar di­lemas e jogos de in­te­resse pa­re­cidos com os que o país em crise se de­fronta no mo­mento?

Amyra El Kha­lili: Antes de ide­a­lizar um pro­jeto so­ci­o­am­bi­ental, é ne­ces­sário que a so­ci­e­dade seja de­vi­da­mente in­for­mada, em lin­guagem de fácil com­pre­ensão, sobre ques­tões téc­nico-ci­en­tí­ficas. Nossa pro­posta é ques­ti­onar esse mo­delo econô­mico para que os atores so­ciais se in­formem me­lhor sobre as al­ter­na­tivas e riscos ao tomar suas de­ci­sões. Afinal, em casos como os dos pro­jetos oriundos do mer­cado de car­bono, re­cusar di­nheiro é um di­reito, quando não um dever.

Vá­rios casos po­de­riam ser ci­tados. Por exemplo: com a di­vul­gação do “Dossiê Acre”, demos vi­si­bi­li­dade às de­nún­cias feitas com pro­jetos do mer­cado de car­bono e pa­ga­mentos por ser­viços am­bi­en­tais no Acre. Ela­bo­rado em 2012, o es­tudo não tinha ainda con­se­guido o me­re­cido es­paço na mídia e nos mais di­versos fó­runs de de­bate, como também se ig­no­rava seu ponto de vista téc­nico, ope­ra­ci­onal, ju­rí­dico, so­ci­o­e­conô­mico, além de essas po­lí­ticas de cima para baixo in­ter­fe­rirem no modo de vida das co­mu­ni­dades in­dí­genas, tra­di­ci­o­nais e cam­pe­sinas da re­gião amazô­nica. 

Temos, atu­al­mente, mais de cinco mil dis­tri­bui­dores, mul­ti­pli­ca­dores e par­ceiros na pro­dução e dis­se­mi­nação de in­for­mação. São essas par­ce­rias e “nós de co­mu­ni­cação” que formam a “ali­ança” que ora com­pleta mais de duas dé­cadas de tra­balho vo­lun­tário, sem re­cursos de em­presas e de go­vernos. Não somos a mídia. Re­pre­sen­tamos para a im­prensa um con­tra­ponto. Apoi­amos a mídia al­ter­na­tiva para que também con­siga seus fi­nan­ci­a­mentos, posto que nos presta um ser­viço de uti­li­dade pú­blica da maior re­le­vância.

Há mais de 20 anos tra­ba­lhamos nesse pro­jeto, de en­ver­ga­dura ge­o­po­lí­tica, pela cul­tura de paz, pela au­to­de­ter­mi­nação e eman­ci­pação dos povos com a cul­tura de re­sis­tência, cujo re­sul­tado se dará a longo prazo. Não bus­camos re­sul­tados ime­di­atos, mas du­ra­douros e ver­da­dei­ra­mente sus­ten­tá­veis, for­mando “ali­anças” in­que­bran­tá­veis. 

Clique aqui para acessar e baixar o livro Com­mo­di­ties am­bi­en­tais em missão de paz – novo mo­delo econô­mico para Amé­rica La­tina e Ca­ribe em PDF.

Ga­briel Brito é jor­na­lista e editor do Cor­reio da Ci­da­dania.

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