Política
Reforma tributária barateia comida saudável e ajuda luta contra fome
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Após 35 anos de debates, a reforma tributária foi promulgada nesta semana pelo Congresso Nacional. O ponto mais comemorado da nova emenda à Constituição (EC 132) é o que unifica cinco tributos em um imposto sobre valor agregado (IVA), ficando uma parte com o governo federal e a outra com estados e municípios. Essa simplificação deve baratear a produção, estimular o investimento e o consumo e alavancar o emprego.
Embora menos comentada, existe outra novidade determinada pela reforma tributária que vai beneficiar diretamente cada brasileiro: a isenção de todos os impostos incidentes sobre os alimentos que compõem a cesta básica, tornando-os mais baratos.
Atualmente, só os tributos federais são zerados. Não há isenção para os estaduais e municipais, mas apenas alíquotas reduzidas, que valem para alguns dos alimentos da cesta básica. As regras, além disso, variam conforme o estado e a cidade.
Por cesta básica, entenda-se não apenas aquele pacote fechado que o poder público distribui à população pobre em ações emergenciais de socorro e programas de assistência social, mas também os alimentos essenciais do dia a dia que pessoas de todos os níveis sociais compram no supermercado, como o arroz, o feijão, a carne, o pão e o leite.
Especialistas ouvidos pela Agência Senado afirmam que a inclusão da cesta básica na Constituição federal é uma medida histórica, pois ajudará no combate à fome no Brasil.
— O Brasil havia saído do Mapa da Fome da ONU em 2014, mas voltou em 2021. É inadmissível que o país, um dos maiores produtores de alimentos do planeta, não consiga garantir a todos um direito tão fundamental quanto a alimentação. Nesta realidade de grandes desigualdades sociais, o dinheiro é um fator determinante para o consumo. Quando o preço dos alimentos da cesta básica baixar, o acesso à comida vai aumentar e a fome vai diminuir significativamente.
Atualmente, 33 milhões de brasileiros passam fome (fazem no máximo uma refeição por dia), segundo a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional. O número equivale às populações de Minas Gerais e do Paraná somadas. Uma década atrás, às vésperas de o país sair do Mapa da Fome, 7 milhões de brasileiros passavam fome.
Quando se somam outros problemas à fome, como a necessidade de diminuir a quantidade e a qualidade dos alimentos consumidos por causa da falta de dinheiro, o Brasil contabiliza 125 milhões de pessoas vivendo em algum nível de insegurança alimentar — praticamente 60% da população nacional.
De acordo com o IBGE, as famílias mais ricas destinam à alimentação 7,5% de sua renda. No caso das mais pobres, o peso da comida no orçamento doméstico salta para aproximadamente 25%, o que prejudica o consumo.
Campos afirma que o barateamento dos alimentos tem o poder melhorar de todo o ambiente econômico do país:
— O Brasil tem hoje uma das taxas de juros mais altas do mundo, que consome bilhões de reais em juros da dívida pública todos os anos. A justificativa para essa taxa alta é a inflação fora da meta. Nos últimos 15 anos, a inflação dos alimentos foi a principal responsável por a inflação geral não ter ficado dentro da meta. Cuidar do preço dos alimentos é essencial não só para o bolso das famílias, mas também para o equilíbrio das contas públicas, que custeiam as políticas de saúde, educação e segurança, por exemplo.
Agora que a cesta básica foi incluída na Constituição por meio da reforma tributária, o próximo passo será aprovar a lei complementar com a definição da lista de alimentos que farão parte dela. Os debates ocorrerão no Congresso Nacional. Campos explica:
— Da mesma forma que o sistema tributário que agora será reformado, a cesta básica no Brasil também é uma confusão. A cesta não é igual no país todo. Existem produtos que são nacionais, mas cada estado pode acrescentar à cesta local os itens que bem desejar. Assim, certos estados incluem alimentos de péssima qualidade nutricional, como macarrão instantâneo, embutidos, enlatados, nuggets. Havendo uma definição detalhada da cesta básica, alimentos como esses deixarão de ganhar incentivos tributários.
Ele continua:
— O que precisa de atenção são os alimentos saudáveis, já que são eles que ficam incessantemente mais caros. Nunca se ouviu falar de inflação do salgadinho ou do macarrão instantâneo.
O economista do Instituto Fome Zero afirma que a definição da cesta básica nacional terá o poder de influenciar diversas políticas públicas federais, estaduais e municipais:
— As políticas de crédito rural dos bancos oficiais, por exemplo, serão obrigadas a levar em conta os produtos da cesta básica. Hoje, mais de 50% do crédito vai para a soja, uma commodity de exportação. O feijão, que faz parte da cesta básica, não recebe nem 1%. Por falta de incentivo financeiro, a tecnologia para a produção de alimentos desse tipo no Brasil, incluindo sementes, insumos e equipamentos, ainda está na Idade da Pedra. Enquanto o agroexportador tem mil créditos e isenções, o produtor para o mercado nacional de alimentos está desassistido. Isso, felizmente, deve mudar.
Segundo ele, a fome é um problema histórico que só começou a ser enfrentado de forma mais ampla nos governos de Fernando Henrique Cardoso, a partir de 1995, e ganhou prioridade no primeiro governo de Luiz Inácio da Silva, a partir de 2003. Campos diz:
— Nos últimos anos, porém, houve um desmonte de muitas dessas políticas. A Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional deixou de existir. Vários projetos foram enfraquecidos. O Programa de Aquisição de Alimentos [PAA], por exemplo, que já teve orçamento de R$ 1 bilhão, recebeu apenas R$ 30 milhões no ano passado. Ele praticamente acabou. Só agora a secretaria e o PAA foram resgatados.
Na avaliação da diretora-executiva da organização não governamental ACT Promoção da Saúde, Paula Johns, a fome persiste porque se trata de um projeto político histórico:
— Primeiro, porque não falta comida. Ao contrário, existe tanta comida no Brasil que chega a haver desperdício. Depois, porque temos toda a expertise necessária para acabar com a fome, já que conseguimos sair do Mapa da Fome uma vez. Apesar disso, o Estado não tem agido. Prefere subsidiar a soja, que é exportada para a produção de ração e alimentos ultraprocessados. Quando convivemos com a fome, a soja não resolve. Ninguém come soja cozida no almoço. Não se trata de uma avaliação ideológica. Basta olhar os números. Neste país, quem consegue puxar as leis e as políticas para atender aos seus próprios interesses são os grupos econômicos mais fortes e poderosos.
Ela explica que a pandemia de coronavírus, iniciada em 2020, contribuiu com o crescimento da fome no Brasil, mas não é suficiente para explicar todo o problema:
— À medida que as políticas públicas foram cortadas, o problema disparou e o Brasil voltou rapidamente para o Mapa da Fome.
O termo “cesta básica” começou a ser usado no Brasil no fim dos anos 1970. Na prática, ela existe desde 1938, mas sem um nome específico, criada por um decreto do presidente Getúlio Vargas que estabeleceu 13 diferentes alimentos que o salário mínimo deveria cobrir para o sustento e o bem-estar de um trabalhador braçal. No caso do feijão, por exemplo, eram 4,5 quilos mensais. No caso da banana, 90 unidades. O decreto de Vargas orienta a cesta básica brasileira até hoje.
Johns afirma:
— Muita coisa mudou nestes 85 anos. A população não é mais a mesma, e o conhecimento sobre a alimentação saudável também não. As discussões no Congresso sobre a lei complementar que determinará a composição da cesta básica nacional serão uma oportunidade excelente para que toda a sociedade se manifeste e exija que a lista esteja alinhada com as diretrizes do Guia Alimentar para a População Brasileira, do Ministério da Saúde.
A má alimentação, incluindo o consumo exagerado de produtos ultraprocessados, provoca males que podem levar à morte, como obesidade, hipertensão e diabetes. Segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), o risco de obesidade em crianças e adolescentes é três vezes maior em domicílios com insegurança alimentar do que naqueles com segurança alimentar.
A diretora-executiva da ACT Promoção da Saúde prossegue:
— As pessoas que têm renda mais elevada também serão afetadas pela modernização da cesta básica e, portanto, precisam pressionar o Congresso nos debates da regulamentação. Não é do interesse da sociedade que a salsicha e o refrigerante continuem chegando à nossa mesa pagando menos imposto do que a abóbora orgânica. Trata-se de uma distorção gravíssima que agora temos a chance de reverter.
Nesse sentido, a reforma tributária recém-promulgada pelos senadores e deputados federais estabelece que a nova cesta básica nacional precisará garantir “a alimentação saudável e nutricionalmente adequada”.
As cestas básicas distribuídas à população carente pelo poder público também terão que obedecer às novas diretrizes.
A coordenadora de Políticas Públicas da ONG Pacto contra a Fome, Rafaela Vieira, aponta como outro ponto inovador da nova emenda constitucional o que exige que a cesta básica considere “a diversidade regional e cultural da alimentação do país”. Ela diz:
— Não faz sentido que os alimentos entregues às comunidades afetadas pela seca na Amazônia sejam exatamente iguais aos distribuídos entre as vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul. Quando a cesta básica ganha flexibilidade para conter alimentos da cultura local, ela não só fortalece a segurança alimentar e a saúde da população, mas também ajuda na sobrevivência das tradições e na valorização da produção local, o que contribui com a geração de emprego e renda nas comunidades.
Desde 2010, a Constituição estabelece a alimentação como direito de todos os brasileiros. Vieira afirma que a colaboração dos indivíduos e das organizações da sociedade no combate à fome é importante, mas ressalva que somente o Estado consegue enfrentar de forma estrutural esse problema, que tem múltiplas causas.
— O sociólogo Betinho já dizia que “quem tem fome tem pressa”. Por isso, as ações individuais e da sociedade, como a arrecadação e a distribuição de alimentos, são necessárias. O Estado, porém, consegue olhar o problema de forma sistêmica e atacar outras causas e raízes, por meio da educação, do combate ao desemprego, de programas de transferência de renda e da política de valorização do salário mínimo, por exemplo. Foi graças às políticas públicas que o Brasil saiu do Mapa da Fome da ONU em 2014 — explica a coordenadora do Pacto contra a Fome.
Vieira destaca que as políticas precisam ser desenhadas considerando que a fome atinge com mais força as famílias negras e as chefiadas por mulheres.
Originalmente, a reforma tributária em análise no Congresso Nacional não tratava especificamente da cesta básica. Havia, inclusive, o temor de que a mudança nas regras dos impostos acabasse encarecendo os alimentos.
A cesta básica só entrou na proposta de emenda constitucional graças à mobilização e à pressão de organizações como o Pacto contra a Fome, o Instituto Fome Zero, o Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) e a Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, que procuraram o Ministério do Desenvolvimento Agrário, e os dois relatores da reforma tributária no Congresso — o deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB) e o senador Eduardo Braga (MDB-AM).
Em outra frente, a reforma tributária deve estimular a alimentação saudável por meio do imposto seletivo — informalmente chamado de imposto do pecado. Incidirão tributos mais altos sobre produtos que causam danos à saúde e ao meio ambiente e contribuem com as mudanças climáticas. Da mesma forma que a composição da cesta básica, esse dispositivo também precisa ser regulamentado pelo Congresso por meio de lei complementar.
— O Brasil finalmente conseguiu aprovar a reforma tributária e determinar a atualização da cesta básica. Agora essa janela de oportunidade que se abre com as discussões da regulamentação de reforma tributária precisa ser aproveitada pelo governo, pela academia, pelas instituições de pesquisa e pela sociedade para pôr fim a esse nosso desafio moral que é a fome.
Fonte: Agência Senado