Medicina
O que causa os soluços e o que fazer para eles pararem
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A cena é bastante familiar: assim que o soluço começa à mesa, surgem as recomendações alheias: “levante os braços”, “tome água gelada”, “coloque borracha na testa”, “prenda a respiração”, “chupe limão”, “coloque açúcar na língua”. Sem falar nas tentativas de susto ou buscas por outras “soluções” que até acabam funcionando, mas não se sabe muito bem por quê. Há dezenas de milhares de sites sobre o tema.
O soluço é uma contração involuntária e desconfortável do diafragma, um músculo em forma de guarda-chuvas que separa o tórax do abdômen e tem um papel fundamental na respiração. Em geral, medidas para parar um soluço não se fazem necessárias porque sua forma mais aguda e comum desaparece sozinha em até dois dias.
Esse tipo mais comum e benigno, que afeta todas as idades, costuma ir e vir de forma espontânea ou a partir de eventos como uma grande e rápida ingestão de água, comida ou ar (enquanto se fala, come ou se mama, no caso dos bebês). Mas há outras formas de soluços persistentes que podem ser sinais de doenças, efeitos colaterais de medicamentos ou mesmo aprendizados cerebrais em fetos e recém-nascidos.
Segundo o Ministério da Saúde brasileiro, as crises de soluço “podem ser sintomas de inúmeras doenças, de ordem respiratória, digestiva, genital, vascular, psicológica, metabólica ou outras relacionadas ao sistema nervoso central”. Há mais de uma centena de associações possíveis entre essas contrações involuntárias e problemas de saúde, mas grande parte delas é conhecida apenas de forma anedótica, ou seja, por meio de relatos de casos e não de estudos aprofundados.
Estima-se que soluços levem a 4 mil internações hospitalares por ano nos Estados Unidos — não há dados disponíveis sobre o Brasil. Em geral, recomenda-se que se procure assistência médica quando o episódio durar mais de 48 horas.
Entenda abaixo os principais tipos de soluço, possíveis medidas para a versão mais conhecida, tratamentos para a forma persistente, a relação com a covid-19 e o papel dele no desenvolvimento das crianças.
Qual é a função do soluço e quais são seus tipos?
Quando respiramos, fazemos um movimento de expansão e retração dos pulmões. Ao inspirarmos, o diafragma se contrai e desce, os músculos intercostais também se contraem levantando as costelas, aumentando o volume da caixa torácica e fazendo com que o ar entre nos pulmões. Ao expirarmos, o diafragma e os músculos intercostais relaxam, baixando as costelas e subindo o diafragma.
Mas o que o soluço tem a ver com a respiração? Bem, como dito acima, ele é uma contração repentina e involuntária do diafragma. Quando isso ocorre, ele se contrai, o pulmão se expande rapidamente e nós respiramos fundo. Mas essa corrente de ar que entra é interrompida quando a abertura entre as pregas ou cordas vocais, a glote, fecha subitamente.
Curiosamente, é por meio da passagem de ar pelas pregas vocais que, com a vibração, surge o som característico de ‘hic’.
Os cientistas ainda não sabem exatamente qual é a função dos soluços. Uma das hipóteses é que eles sejam resquícios evolutivos de ancestrais da nossa espécie que viviam embaixo d’água. Para o antigo girino, explica o médico e apresentador da BBC Michael Mosley, o nervo que controlava esse reflexo tinha uma função útil, permitindo que a entrada do pulmão permanecesse aberta ao respirar o ar, mas fechando-o ao engolir água, que então seria direcionada apenas para as guelras.
E no caso dos mamíferos? Um grupo de pesquisadores da University College London (UCL), no Reino Unido, apontou recentemente uma possível explicação para o papel deles em fetos e recém-nascidos.
Segundo análises de bebês prematuros por meio de eletroencefalograma, os soluços podem ajudar o cérebro de uma criança a desenvolver conexões neuronais e aprender como monitorar os músculos envolvidos com a respiração — e assim poder controlá-los quando sentir necessidade.
No caso dos adultos, a presença desse reflexo seria novamente explicada como um resquício, mas desta vez, segundo essa hipótese, ligado à própria infância.
Os especialistas atualmente classificam os soluços em três tipos a partir de sua duração: agudo/transitório/episódico, persistente ou intratável.
“A grande maioria dos soluços são benignos, e autolimitados, ou seja, aliviam por si só”, explica Nicollas Nunes Rabelo, professor, neurocirurgião e diretor da SBN Ligas Acadêmicas da Sociedade Brasileira de Neurocirurgia, em entrevista à BBC News Brasil. Esse primeiro tipo é o agudo ou transitório, o mais comum e curto (não passa de dois dias). A incidência dele não varia muito em relação à idade ou ao sexo.
A segunda categoria é a persistente, que dura mais de dois dias e pode ser um sinal de doenças ou outras condições de saúde que demandam investigação médica. “O soluço persistente muitas vezes está associado a irritação do nervo frênico, pelas alterações gástricas, doenças abdominais, como os refluxos. Do ponto de vista neurológico, está associado a lesões cerebrais graves, traumatismos, acidente vascular cerebral isquêmico (AVCI), hemorragia cerebral e tumores cerebrais”, explica Nunes Rabelo.
O terceiro e último tipo é o chamado intratável. Ele dura mais de um mês e pode acarretar consequências significativas na vida do paciente, como dificuldade de falar, exaustão física e mental, insônia e desnutrição. Também demanda avaliação médica e pode ser sintoma de doenças ou outras condições de saúde.
Para Nunes Rabelo, o termo mais adequado para definir essa categoria seria “refratário ao tratamento”. “Ou seja, já foram tentadas todas as terapêuticas e não se obteve sucesso.”
O segundo e o terceiro tipos, segundo alguns estudos, costumam aparecer mais em homens acima de 60 anos.
O que pode causar soluços?
Há diversas causas possíveis para os três tipos citados acima.
No caso do soluço agudo e temporário, a origem pode estar ligada a questões mecânicas, por exemplo. Entre elas, comer apressadamente grandes quantidades de comida, falar muito ao comer ou beber, ingerir alimentos bastante picantes ou fazer mudanças bruscas na ingestão (como alternar de uma refeição muito quente para outra muito fria). Outras das possíveis causas são distensão abdominal, tabagismo, consumo excessivo de álcool ou de bebidas gaseificadas e fatores emocionais.
Isso tudo pode gerar uma irritação do diafragma, afetando o nervo frênico ou o nervo vago, que são duas das estruturas periféricas do sistema nervoso que fazem a comunicação entre o corpo e o cérebro. O nervo frênico, por exemplo, é responsável por transmitir e controlar informações ligadas à respiração.
No caso do soluço persistente (que dura de 2 a 30 dias), ele também pode ser causado por uma irritação ou lesão dos nervos frênicos e vagos, mas há diversas outras possibilidades envolvidas. Por isso é importante que o caso seja avaliado por um médico.
Uma das possíveis associações envolve o refluxo esofágico, mas este pode ser tanto uma causa quanto uma consequência do soluço persistente. Estima-se que 12% da população brasileira seja afetada pelo refluxo gastroesofágico, que em linhas gerais se dá quando parte do conteúdo ingerido retorna do estômago para o esôfago junto com o suco gástrico, causando inflamação no órgão.
Como dito anteriormente, há mais de 100 possíveis causas de soluços persistentes ou resistentes ao tratamento (chamados de intratáveis), entre elas medicamentos, anestésicos, procedimentos (como endoscopias), uso de substâncias (como tabaco e álcool) e doenças.
Um estudo de dois pesquisadores da Universidade Médica de Wakayama, no Japão, por exemplo, apontou que pacientes com doença de Parkinson têm uma taxa de soluços até 20% maior do que pessoas que não têm essa doença neurológica crônica e progressiva que, segundo estimativas, atinge mais de 200 mil pessoas no Brasil.
Os soluços também foram associados a casos de covid-19. Tanto como manifestação neurológica da doença ou da pneumonia em si quanto como efeito colateral do tratamento com o corticoide dexametasona, usado para combater inflamações.
O antibiótico azitromicina, amplamente utilizado no Brasil contra a covid-19 (mesmo sem eficácia comprovada), também pode causar soluços persistentes.
Há também registros de casos ligados a câncer, ansiedade, acidente vascular cerebral, diabetes mellitus, infarto do miocárdio, distúrbios metabólicos, insuficiência renal, entre outras doenças e os medicamentos utilizados para tratá-las. Caberá a um médico investigar as possíveis origens dessa condição, e a partir daí traçar um tratamento.
Em julho deste ano, o presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, passou por um episódio de soluço persistente, que durou mais de dez dias e afetou inclusive a capacidade dele de se comunicar. À época, o mandatário atribuiu a causa dessa condição a medicamentos e a um implante dentário que ele havia feito.
Segundo Lúcio Lucas, chefe do centro cirúrgico do Hospital Sírio-Libanês em Brasília, “os soluços podem ser um sintoma de obstrução, especialmente quando esta acontece em algumas regiões do intestino delgado”. Esse quadro estava possivelmente relacionado, de acordo com especialistas ouvidos pela BBC News Brasil à época, às várias cirurgias que Bolsonaro precisou passar após sofrer uma facada em 2018.
Diversos casos de pessoas com soluços intratáveis chegam às manchetes dos jornais. A mais longa crise de soluços conhecida, por exemplo, ocorreu com o americano Charles Osborne. A condição teve início depois que ele tentou pesar um suíno e durou 68 anos, de 1922 a 1990. No início, ele soluçava cerca de 40 vezes por minuto.
O caso ganhou notoriedade, chegou ao Livros dos Recordes Guinness e gerou uma enxurrada de sugestões de tratamentos e soluções caseiras, mas nenhuma delas surtiu efeito.
O que fazer para acabar com o soluço?
Por ser uma condição bastante comum, o tratamento e a consulta médica só são indicados quando o soluço se torna persistente e incômodo, atrapalhando a fala, a ingestão de alimentos e o sono, por exemplo.
Em avaliação clínica, o médico analisará o histórico de saúde do paciente, seu estilo de vida e informações sobre eventuais procedimentos ou tratamentos a que ele foi submetido. Se houver necessidade, o profissional de saúde pode requisitar exames complementares de diagnóstico, como análises laboratoriais e exames endoscópicos.
“O correto a todo soluço é identificar se há uma causa-base que justifique o quadro, e iniciar tratamento específico com medicações de primeira linha (que costumam funcionar para a grande maioria dos casos). Posteriormente, se for o caso, adota-se medicações de segunda linha e até mesmo procedimentos cirúrgicos”, explicou Nunes Rabelo, da Sociedade Brasileira de Neurocirurgia.
O tratamento pode envolver, por exemplo, relaxantes musculares centrais, antieméticos (classe de medicamentos que trata náuseas e vômitos) e antipsicóticos. Há também abordagens que envolvem manobras respiratórias, massagem carotídea, manobra de Valsalva e indução de vômito, por exemplo.
Cada caso é um caso, e o tratamento com remédios sempre deve ser definido por um profissional especializado. Especialistas alertam para o risco de se automedicar, prática que pode agravar a condição de saúde.
O sistema de saúde britânico (NHS) divulga uma lista que orienta o que pode ser feito antes do uso de medicamentos ou outros tipos de tratamento. Mas o próprio órgão reconhece que não há evidências de que essas abordagens funcionem para todo mundo:
– prender a respiração por um curto período de tempo;
– beber água gelada;
– morder um limão ou experimentar vinagre;
– aproximar os joelhos até o peito e inclinar-se para frente;
– respirar em um saco de papel sem colocá-lo na cabeça;
– engolir um pouco de açúcar granulado.
Algumas dessas alternativas estão ligadas ao nível de CO? (gás carbônico) no sangue. Quando essa concentração aumenta, ela pode ajudar a contrair o diafragma e acalmar o nervo frênico, interrompendo esse reflexo.
A ingestão de água gelada é associada tanto à mudança de vibração do diafragma quanto a um estímulo do nervo vago, que é ligado à secreção de líquidos digestivos e também afeta o diafragma.
Segundo o Ministério da Saúde brasileiro, um susto pode mudar o ritmo da respiração, fazendo com que ele volte ao estado anterior ao soluço. A entrada brusca de ar provoca “um alerta que libera, na corrente sanguínea, um composto químico chamado catecolamina, que é capaz de regular o funcionamento do nervo frênico (responsável pelo processo de inspiração do diafragma)”.
Há outras recomendações não farmacológicas, como acupuntura, massagem do seio carotídeo (na região do pescoço), segurar os joelhos contra o peito e a manobra de Valsalva, técnica que consiste em tentar soltar o ar enquanto se fecha a boca e o nariz ao mesmo tempo.
Há também equipamentos que podem tentar ajudar nessa tentativa de cessar o soluço – como é o caso de uma ferramenta de sucção e deglutição inspiratória forçada (Fisst), que estimula os nervos frênico e vago em torno da contração do diafragma.
Grosso modo, ele é uma espécie de canudo que exige um esforço enorme de sucção por causa de uma válvula de pressão (cinco vezes maior do que o normal), e para fazer esse movimento é preciso contrair o diafragma.
“A pressão de sucção mais alta requer uma atividade mais alta do diafragma, o que evita os espasmos repentinos que causam soluços. Além disso, engolir a água dessa maneira requer atividade e coordenação dos músculos da caixa vocal, que também podem ser responsáveis por causar soluços. A atividade simultânea dos músculos do diafragma e da garganta reconfigura os nervos do cérebro, que são responsáveis por causar soluços, explicou à BBC News Brasil o médico e pesquisador Ali Seifi, professor do Departamento de Neurocirurgia da Universidade de Saúde do Texas, em San Antonio.
Segundo ele, que inventou o dispositivo batizado de HiccAway, estudos revisados por outros cientistas apontaram uma eficácia de 90%.
Há, por fim, também relatos de soluções curiosas para parar os soluços.
Nos anos 1980, o médico americano Francis Fesmire, da Universidade do Tennessee (EUA), tentou diversas técnicas para conter as contrações em um homem que chegou ao pronto-socorro reclamando de soluçar até 30 vezes por minuto nos últimos três dias.
Num dado momento da consulta, o médico se lembrou de um caso publicado no ano anterior em que o batimento cardíaco acelerado de uma mulher de 71 anos foi desacelerado por um médico inserindo um dedo em seu ânus. Ele tentou o mesmo com o paciente que soluçava e funcionou.
O artigo em que relata o caso, publicado em 1988 com o título Término de soluços intratáveis com massagem retal digital, o levou a ganhar um IgNobel, uma paródia do conceituado prêmio Nobel.
Ao receber o prêmio por sua descoberta, Fesmire disse ter percebido desde o feito que um orgasmo teria o mesmo efeito e poderia ser até preferível para alguns pacientes. Ambos os métodos teriam a função de estimular o nervo vago e, por extensão, tentar conter os reflexos involuntários e constantes do diafragma.
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