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Imigrantes em RO: a história de venezuelanos que transformaram a crise em recomeço


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Em cerca de três anos, o declínio econômico, político e social que tomou pouco a pouco a Venezuela se transformou na maior crise humanitária da América Latina. Como reflexo do problema, milhares de venezuelanos não viram outra opção a não ser deixar o país de origem – com ou sem condições – em busca de um recomeço.

Mesmo não sendo a preferência ou a primeira opção de refúgio, alguns resolveram apostar na região e reconstruir suas vidas em Rondônia, nem que seja por pouco tempo.

Apesar de Rondônia ser “corredor de passagem” de imigrantes, o G1 conversou com quatro venezuelanos que decidiram ficar no estado e desenhar uma nova trajetória. Leia os relatos abaixo:

A 1ª a entrar na Unir

  • Karen Padilha, 30 anos

Karen Padilha e sua família. — Foto: Pedro Bentes/G1/Arquivo

Karen Padilha e sua família. — Foto: Pedro Bentes/G1/Arquivo

Há pouco mais de dois anos vivendo em Porto Velho, a venezuelana Karen Padilha, de 30 anos, só conseguiu ter uma leve folga no orçamento em abril de 2019. Esse ano, por exemplo, foi a primeira vez que ela organizou um churrasco simples em família.

O marido, também venezuelano, montou uma pequena empresa de envelopamento de carros, motos, móveis e o que mais fosse possível envelopar dentro de casa. Apenas uma lona branca divide o lar do trabalho.

Com o empreendimento, Karen estima lucrar hoje em média R$ 1,6 mil mensais, distribuídos em contas obrigatórias, filhos, alimentação e saúde. “São em torno de R$ 500 de compra no mercado, mais R$ 800 do aluguel, tem a luz ainda, que é bem cara aqui em Porto Velho, e água”, explicou.

Ela se divide entre ajudar o esposo com a empresa, cuidar da filha, a pequena Anastasia, de quase 2 anos, o filho mais velho do companheiro e manter em dia os estudos. Karen, agora, é estudante da Universidade Federal de Rondônia (Unir), sendo a primeira venezuelana a ingressar na instituição após o início da crise que assola seu país.

Família de Karen conseguiu abrir uma empresa de envelopamento de carros e trabalham juntos.  — Foto: Mayara Subtil/G1

Família de Karen conseguiu abrir uma empresa de envelopamento de carros e trabalham juntos. — Foto: Mayara Subtil/G1

Ela encarou o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2018 e conquistou uma vaga no curso de biblioteconomia. O reforço veio por meio da obrigação que sentia em aprender português e prosseguir com o mesmo curso que estava concluindo na Universidad Central de Venezuela antes de deixar Caracas.

“Eu tinha muitos planos, mas chegou uma hora que eu disse que não iria sair da Venezuela, pois eu estava no oitavo semestre. Na Venezuela são 10 semestres para fazer biblioteconomia. Estava bem perto da formatura, então não queria sair naquela hora. Pensei em me formar primeiro. Mas quando cheguei no nono semestre, minha filha falou ‘Oi, mãe! Estou aqui na sua barriga’. Nisso, fiquei medrosa, por causa da situação que a Venezuela estava em relação à maternidade, que não estava tendo cama para as mulheres”, explicou.

A luta de Karen agora é pelo reaproveitamento de matérias. Segundo ela, “está enrolado. Se eu conseguisse aproveitar todas as matérias que concluí na Venezuela, passaria para o 6º semestre e terminaria em dois anos, até dois anos e meio. Mas estou esperando”.

Karen e sua família reconstroem aos poucos a vida que precisaram deixar na Venezuela.  — Foto: Mayara Subtil/G1

Karen e sua família reconstroem aos poucos a vida que precisaram deixar na Venezuela. — Foto: Mayara Subtil/G1

A espera em adiantar a graduação no Brasil tem motivos: planos de estudar para concursos de nível superior ou até mesmo se mudar de Porto Velho.

Karen lembra que, quando saiu da capital venezuelana, o objetivo era seguir para Maringá, onde hoje reside um irmão. Porém, o dinheiro que tinha para ir embora só foi suficiente para chegar em Manaus e continuar a viagem até Porto Velho.

No momento, boa parte da família da estudante da Unir está “espalhada”. “Tenho um irmão em Maringá, aqui no Brasil, uma irmã no Chile, outra no Peru. Na Venezuela ainda tem um que está cuidando de pai e mãe”, disse.

Apesar dos poucos gastos, do curso em andamento e da empresa da família ainda no começo, Karen diz se sentir aliviada. Para ela, viver na Venezuela novamente, no atual cenário, é quase impossível.

“O governo (venezuelano) pode sair, a economia pode melhorar até muito rápido, só que o negócio é a sociedade. O país está ficando cada dia pior e não se estava fazendo nada. Então isso me fazia pensar ‘Eu quero sair. Eu quero procurar um negócio melhor. Estou fazendo uma faculdade, estou me formando, mas não para ficar aqui'”, recordou.

Diferentemente de ter chegado na capital de Rondônia quase sem dinheiro no bolso e sem recursos, a estudante ainda vive com pouco, mas diz que é o suficiente.

“Esse primeiro churrasco que preparei, apesar de simples, tem muito significado. Antes fizemos questão [ela e o marido] de deixar tudo em dia: comida, água, luz e aluguel pagos, tudo certinho. Agora está melhor. Claro que não é sempre que conseguimos um agrado, mas hoje consigo ter isso. Temos o básico pelo menos e sempre que precisamos de algo pensamos primeiro na prioridade. Aos poucos tudo vai se ajeitando”, reiterou.

Dormida em salão de hotel

  • Adriana Campos, 27 anos

Ao contrário de Karen Padilha, Adriana Campos, de 27 anos, conseguiu finalizar o curso de direito na Venezuela antes de sair do país. A decisão foi tomada há um ano, quando a jovem venezuelana percebeu que não daria para trabalhar como advogada e ter qualidade de vida ao mesmo tempo. Nesse período, quem ganhava um salário mínimo no país, por exemplo, já não conseguia garantir o básico mensalmente.

“Venezuela é um país petroleiro, não tem uma economia produtiva. Essas coisas que vem acontecendo são frutos da corrupção, do governo, dos empresários, a caída do preço do petróleo, a falta de uma economia produtiva que oferecesse à população venezuelana condições para morar. Isso gerou uma crise econômica, social, humana”, explicou.

“É como se o país acabasse. Como se não existisse mais a Venezuela”, relatou.

Adriana Campos e o namorado também recomeçaram a vida em Porto Velho.  — Foto: Mayara Subtil/G1

Adriana Campos e o namorado também recomeçaram a vida em Porto Velho. — Foto: Mayara Subtil/G1

Testemunhando o lento declínio generalizado do país, Adriana e o namorado, então, partiram. Porém, a recém formada não sabia que essa decisão seria o ponto mais fácil a ser enfrentado dali em diante. “Quando você chega em um país que não fala seu idioma, que você não conhece ninguém, não tem família perto, não sabe nada, é muito mais difícil”.

No meio do caminho, o casal de venezuelanos viu de perto a pobreza extrema. Ela lembra que chegou a ver famílias, crianças, adultos e jovens tendo que beber água suja do chão para matar a sede. “São filhos, crianças passando fome. Ninguém merece isso. Ninguém”, disse.

Porto Velho, segundo Adriana, não chegou a ser escolhida pelo casal justamente por preferirem países próximos como Colômbia, onde a língua é a mesma. Só chegaram na capital porque “foi onde o dinheiro deu”.

A venezuelana e o companheiro conseguiram pagar três dias de diárias em um hotel apenas. Depois desses dias, Adriana conversou com o dono do local e o máximo que conseguiu foi ficar dormindo no salão do estabelecimento. “Foi muito doloroso. Passei por muitos perrengues”, relembrou.

“Eu não tinha cozinha, geladeira, colchão, nada. Apenas para pagar a diária. Só isso. Nós vendemos água na rua. Trabalhei como auxiliar de cozinha. Meu namorado é artista, é muralista. Ele fez mural para a Marechal Deodoro. Estava desesperada, pois estava já há três meses aqui sem trabalho, dinheiro, então foi muito difícil. Muito mesmo”.

A vida de Adriana passou a ter pequenas melhoras depois que começou a entregar currículos por Porto Velho. Em uma dessas entregas, ela conta que um homem a parou pedindo o documento.

Ao ler que a venezuelana tinha curso superior, tirou uma foto e mandou o registro a uma conhecida. Hoje, essa mulher é chefe de Adriana, que trabalha atualmente em um hotel da capital. “Ligou para mim, me chamou para uma entrevista e gostou. Não são todas as pessoas que fazem isso e minha chefe fez isso por mim. Trabalho há 5 meses no hotel e estou muito feliz”.

Com o trabalho, Adriana atualmente leva uma vida simples, mas controlada, ao lado do companheiro. Seus pais continuam na Venezuela desde então e a jovem já consegue ajudar a família enviando dinheiro. Agora, está buscando a felicidade. “Estou trabalhando muito, ajudando minha família. Minha felicidade está incompleta sem eles, mas estou a buscando”, finalizou.

Xenofobia e assédio

  • Kyndra de Castro, 23 anos

Mathias, Kyndra e Fred tentam se estabilizar aos poucos em Porto Velho.  — Foto: Arquivo pessoal

Mathias, Kyndra e Fred tentam se estabilizar aos poucos em Porto Velho. — Foto: Arquivo pessoal

Mesmo com o marido em dois empregos e vendendo produtos pela capital Caracas, a professora de dança venezuelana Kyndra de Castro já estava prevendo, em 2016, quais seriam as consequências da crise. Com os preços mais altos e o dinheiro insuficiente para garantir o básico, a jovem de 23 anos decidiu deixar a Venezuela com a família.

Países como Argentina, Colômbia e Equador estavam entre os destinos de refúgio. Porém, o que freou o planejamento foi a falta de dinheiro. “Pensamos em todos esses, mas era sempre o dinheiro que não deixava. Porém, não estava dando para continuar na Venezuela. Estava tudo muito caro, muito difícil”, mencionou.

“Eu chorei muito não porque eu quis sair, mas porque eu precisava sair”

Hoje com o filho Mathias, de quase 4 anos, estudando na escola onde Kyndra dá aulas de dança para crianças em Porto Velho e o esposo, Fred Castro, de 25 anos, trabalhando como vendedor interno em uma franquia de aparelhos eletrônicos, ela não pensa no momento em voltar à Venezuela ou seguir a outro estado ou até país.

Com o pouco que vive atualmente – Fred ganha um salário mínimo e Kyndra não tira mais que R$ 400 – ela garante que situação atual não se compara com a jornada trilhada pela família até pisar em Porto Velho.

“Por hora está tranquilo assim, até melhor do que estava quando vivíamos na Venezuela. O objetivo agora é crescer”, reiterou Kyndra.

Foi com apenas R$ 100 que a família chegou na fronteira do Brasil. Após um mês pegando carona, passando alguns dias com fome e ainda tentando cuidar do filho que contraiu pneumonia e catapora nesse meio tempo, Kyndra seguiu para Boa Vista (RR). De lá, a Manaus (AM).

“Era para ficarmos sete dias em uma casa de abrigo em Manaus, mas ficamos meses. Todo dia, eu e meu marido saíamos a procura de emprego. Porém, como lá estava muito mais difícil, decidimos seguir para Porto Velho. Chegamos com pouco mais de R$ 250”, relembrou.

Kyndra e Mathias, de quase 4 anos, que contraiu catapora e pneumoria durante a viagem.  — Foto: Pedro Bentes/G1/Arquivo

Kyndra e Mathias, de quase 4 anos, que contraiu catapora e pneumoria durante a viagem. — Foto: Pedro Bentes/G1/Arquivo

Já em Rondônia, a família foi encaminhada para um abrigo onde tinha apenas Kyndra e o filho de mulher e criança. No local onde passou três meses, conheceu o preconceito contra os imigrantes.

Kyndra e a família resolveram sair após o trio conseguir um novo local para morar, além de um trabalho em um rancho da Zona Rural. Entretanto, a vida da família venezuelana piorou com o tempo. Foi nesse período se deparou com a xenofobia e o assédio sexual.

“No início davam tudo. Meu marido trabalhava lá. Mas depois começaram os assédios por parte do dono. Ele começou a cobrar por ovo e arroz”, reiterou.

Dois meses depois, Kyndra conseguiu se mudar com a ajuda de um centro espírita. O dono do rancho chegou a pagar o que devia à família, mas ainda ficou faltando R$ 50. Nessa fase, ela passou a trabalhar na escola e o marido conseguiu um emprego em um mercado.

“Ainda dou aula na escola. São três por semana. Meu marido está há um ano no novo emprego. Meu filho estuda na escola onde trabalho. Ele até come por lá. Eu também como na escola às vezes. Mas mesmo com pouco, a situação melhorou muito. Com R$ 400 consigo fazer a compra do mês. Não vivemo no luxo, mas não estamos mais naquela situação”, explicou.

Na Venezuela, ainda restam tios e primos de Kyndra. O pai e o avô paterno da jovem, por exemplo, se estabilizaram na Espanha.

Questionada sobre a situação de seu país, Kyndra confirmou que ainda tem esperança de que a situação melhore, mesmo que de forma extremamente lenta. “Teria que sair quem está no governo. Calculamos que, no mínimo, tudo comece a melhorar em seis anos”, opinou.

Rota não cumprida

  • Ivan Prado, 55 anos

Ivan e as filhas Victoria e Camila, respectivamente.  — Foto: Mayara Subtil/G1

Ivan e as filhas Victoria e Camila, respectivamente. — Foto: Mayara Subtil/G1

 

O motivo que fez com que o empresário e arquiteto venezuelano Ivan Prado, de 55 anos, permanecesse em Porto Velho chega a ser curioso. O carro onde estava ele e sua família, que seguiam destino a Buenos Aires, em julho de 2018, acabou quebrando no meio do caminho – a capital.

Porém, sem ter como seguir viagem, ele e as filhas, Victoria Alexandra Prado, de 16 anos, e Vanessa Prado, de 23 anos, decidiram ficar. Nessa época, a esposa dele, Tânia Griselda Pacheco, de 56 anos, já estava no Peru com um irmão.

O processo de imigração da família Prado começou em 2017. Ivan arquitetava um longo plano para cruzar a fronteira brasileira e chegar na Argentina. Em paralelo a isso, a crise, segundo o venezuelano, foi se agravando com a conquista do poder político. Não havia investimento no agronegócio, por exemplo.

Rota planejada pela família Prado com objetivo de chegar em Buenos Aires.  — Foto: Arquivo pessoal

Rota planejada pela família Prado com objetivo de chegar em Buenos Aires. — Foto: Arquivo pessoal

“Minha empresa mesmo, que eu tinha no país, fechou em 2017 fruto dessa crise. Dispensei funcionários e vendi tudo. Eu ainda fiz o que pude pela minha nação. Cheguei a participar de manifestações árduas, violentas, tudo em prol da Venezuela. Mas hoje já não se é possível viver lá”, explicou.

Antes de sair de vez do país e parar em Porto Velho, o empresário estudou a fundo todos os territórios que tinha em mente para morar. Naquele tempo, a Argentina, de acordo com Ivan, estava controlada financeiramente e havia conhecidos no país. “Era o nosso primeiro destino mesmo. Buenos Aires estava no topo da lista”, disse.

O local de partida da família – dia 1º de junho de 2018 – foi Maracay, capital do estado de Aragua, na Venezuela. O objetivo inicial era chegar em Manaus e embarcar em um navio que o levaria com as filhas até Humaitá (AM).

Mas, por conta da dificuldade com o português, acabaram chegando ao Porto do Careiro Castanho. Dali, pegaram a BR-319. “Então tivemos que continuar com nosso veículo pela floresta amazônica”, complementou. Foi quando o venezuelano e as filhas chegaram em Porto Velho.

O outro filho, Ivan Alexandro Prado, de 30 anos. Ele ainda vive na Venezuela e está terminando a graduação. Tânia hoje em dia já vive com a família na capital. O plano é que o mais velho se una a família assim que terminar a faculdade. “Ele entregou o trabalho de conclusão de curso já, mas ainda estamos vendo, pois tem um filho que está morando no Peru com a mãe”, explicou o empresário.

Ivan e as filhas durante a viagem que tinha destino inicial Buenos Aires.  — Foto: Arquivo pessoal

Ivan e as filhas durante a viagem que tinha destino inicial Buenos Aires. — Foto: Arquivo pessoal

Já estável em território portovelhense, Ivan Prado decidiu ir atrás de retomar sua empresa, destinada a “conforto, qualidade de vida”. Primeiro, se dedicou aos estudos e fez um curso no Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae-RO).

Foi em julho de 2018 que Ivan entrou com um novo processo para abrir o empreendimento novamente. Atualmente, a empresa já conta com 28 clientes firmes e ele busca parcerias com o Instituto Federal de Rondônia (Ifro). O plano é expandir o negócio pela cidade. Outra meta a ser alcançada por Ivan é construir uma associação voltada a venezuelanos em Porto Velho. O processo está na fase de reunião da documentação.

“Quero gerar empregos, pois daqui a pouco vamos precisar de ajuda. Isso tanto para brasileiros como também venezuelanos. Temos dois funcionários venezuelanos, mas quero abrir mais vagas. Com a associação, a ajuda poderá ser maior para quem chega ou precisa de assistência”.

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