Mato Grosso
Empregado submetido a condições degradantes de trabalho por mais de 10 anos consegue reparação na Justiça
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A Primeira Turma de Julgamento do Tribunal Regional do Trabalho da 23ª Região (TRT-MT) decidiu manter, por unanimidade, a condenação do proprietário de uma fazenda na região de Cáceres, por submeter um trabalhador a condições análogas às de escravo. Na ação civil pública movida pelo MPT, ficou comprovado o atentado a direitos humanos e a situação de vulnerabilidade da vítima, atualmente com 60 anos, que trabalhava no local há mais de 10 anos sem carteira de trabalho assinada.
Três visitas técnicas foram realizadas por uma equipe do Centro de Referência de Assistência Social (CREAS) à fazenda, localizada no Assentamento Vida Nova, no período de novembro de 2015 a janeiro de 2017. Durante essas visitas técnicas, ficou comprovado que a casa onde residia o empregado era totalmente imprópria para o ser humano. Além das péssimas condições de moradia, da falta de banheiro e água encanada, o trabalhador vivia em local isolado e sem meios de locomoção, tendo sua própria liberdade de ir e vir prejudicada. Por ser analfabeto, não conseguia diferenciar notas, sendo incapaz de identificar até mesmo quanto de dinheiro realmente ganhava do seu patrão.
No acórdão, o MPT conseguiu manter todas as obrigações de fazer e acrescentar mais uma: a de que o proprietário recolha, na conta vinculada do FGTS, 8% da remuneração paga e devida aos futuros empregados, até o dia 7 do mês subsequente, sob pena de multa de R$5 mil, acrescida de multa de R$1 mil por trabalhador prejudicado.
Dentre as obrigações a serem observadas pelo empregador, também sob pena de multa, estão: disponibilizar instalações sanitárias em condições mínimas de higiene, com lavatórios, vasos sanitários, chuveiro, água limpa e papel higiênico; e fornecer água potável e fresca em quantidade suficiente para consumo. O réu deverá, ainda, sob pena de multa de R$ 50 mil por constatação, abster-se de manter trabalhadores em condições degradantes de trabalho, de consentir com a existência dessa prática em qualquer de suas propriedades, ou de, por qualquer meio, contribuir com ela.
Além da declaração judicial de que o réu submeteu o empregado a condições análogas às de escravo, o trabalhador conseguiu, graças à ação do MPT, a assinatura da sua CTPS com data de admissão de 24/02/2007 e o recolhimento do FGTS devido correspondente ao período de mais de 10 anos de vínculo de emprego.
O relator do acórdão, desembargador Bruno Luiz Weiler Siqueira, afirmou que, “no caso sob análise, ficou claro que o Réu violou normas constitucionais relativas aos direitos sociais e fundamentais do trabalhador S. B. C., porquanto deixou de efetuar o registro do seu contrato de trabalho por mais de dez anos, bem como não lhe forneceu condições digna de moradia, o que deu ensejo à propositura da presente ação civil pública (…)”.
Na decisão, todavia, os desembargadores proveram parcialmente o recurso do proprietário da fazenda para reduzir o valor da condenação por danos morais coletivo e individual, mas mantiveram a condenação do empregador a arcar com essas verbas.
A sentença de primeiro grau havia sido exarada pelo juiz do Trabalho José Pedro Dias, da Vara do Trabalho de Cáceres, no dia 12 de março de 2018. Nela, o magistrado salientou que as condições de trabalho degradantes às quais o trabalhador fora submetido causavam inegável repulsa coletiva e intolerância social e reclamavam não apenas a condenação ao pagamento de dano moral coletivo. “(…) é imperiosa a reparação dos danos morais individuais sofridos pelo trabalhador, configurados pela grave ofensa à sua dignidade humana por todo o período em que esteve submetido a condições de trabalho degradantes”, disse.
Sujeição
O MPT instaurou inquérito civil para apurar denúncia de trabalho escravo a partir de ofício encaminhado pela 1ª Promotoria Cível de Cáceres. As irregularidades relatadas foram apontadas inicialmente pelo Centro de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS) do Município, após provocação do Ministério Público Estadual.
Na condenação de primeiro grau, o juiz salientou tratar-se de típico caso de sujeição, que ocorre quando o trabalhador submete o seu próprio “ser” à figura do empregador, deixando de ter vontade própria e se tornando um objeto nas mãos do detentor do meio de produção. De acordo com o magistrado, a sujeição não se confunde com a subordinação, utilizada no art. 3º da CLT como um dos requisitos jurídico-formais do contrato de emprego.
“O que se subordina ao empregador é o meio pelo qual o serviço é prestado, seguindo as regras determinadas, desde que estas sejam legais e morais”. A sujeição, por sua vez, “é quando o empregado, mesmo sabendo que a sua dignidade está sendo frontalmente maculada, vende a sua força de trabalho, laborando em condições degradantes, sem higiene, sem remuneração compatível, em ambiente de trabalho que oferece-lhe riscos à saúde e à vida, tudo porque é melhor ter um pouco, ainda que em péssimas condições, que nada”.
Tanto para o MPT quanto para a Justiça do Trabalho, ao aceitar trabalhar em condições degradantes, a vítima não estaria exercendo o seu direito de livremente escolher o seu emprego, mas sim se sujeitando a condições que afrontam a sua dignidade, pois, antes de tudo, precisa se alimentar e alimentar a sua família. Tal situação leva empregadores a se valerem da condição de penúria alheia para tratar seres humanos como propriedade privada, deixando de reconhecer neles a dignidade que lhes é inerente.
“Nesse sentido é crucial frisar que, embora o próprio trabalhador tenha expressado a sua aceitação às condições de vida e trabalho a que estava submetido na propriedade do réu, a situação relatada pelos assistentes sociais revela verdadeiro estado de sujeição do empregado, potencializada pelo fato de se tratar de pessoa não alfabetizada, condição que lhe reduz a capacidade de apreender a extensão de seus direitos trabalhistas e, igualmente, os direitos inerentes à sua dignidade”, afirmou o juiz na decisão.
Legitimidade
Um dos pontos a serem destacados na sentença e no acordão é o reconhecimento de que também se insere no rol de atribuições institucionais do MPT a defesa de direitos individuais indisponíveis, mesmo que seja de um único trabalhador prejudicado.
O proprietário alegou que o órgão não estaria cumprindo o seu papel de defender direitos difusos ou coletivo, que o direito postulado seria individual de pessoa determinada maior e capaz e, ainda, que o MPT sequer teria autorização expressa ou anuência da vítima para a propositura da ação.
Os argumentos, entretanto, não foram aceitos nem pelo juiz de primeiro grau e nem pela turma de julgamento do TRT, com a explicação de que a ofensa de submeter uma pessoa a condições degradantes de trabalho transcende a esfera individual, na medida em que a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho são fundamentos da República Federativa do Brasil, resultando em uma lesão a valores e bens fundamentais para toda a sociedade brasileira.
“Cumpre registrar que a lesão noticiada na inicial não se adstringe ao empregado citado nos relatórios de inspeção elaborados pelo Centro de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS), atingindo uma esfera muito maior, e mesmo a sociedade como um todo, em vista do impacto social da prática alegada na inicial, que implica ofensa à dignidade dos trabalhadores em geral, daí haver, inclusive, pedido de indenização por danos morais coletivos. Ademais, objetivando a presente ação, também, a defesa de direitos individuais indisponíveis do trabalhador S. C., ligados à sua dignidade humana, dentre eles a condenação do Réu ao pagamento de indenização por danos morais individuais e à anotação da Carteira de Trabalho, certa é a legitimidade do Parquet, nos termos do art. 127 da Constituição Federal, ante a indisponibilidade dos direitos pleiteados, sendo irrelevante o fato de o Autor não ser idoso na data da propositura da ação”, diz o trecho do voto.