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Após um ano, vítimas do incêndio na Creche Gente Inocente buscam amparo e lutam contra dor


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Prédio destruído pelas chamas foi reconstruído, mas pais de crianças feridas buscam ajuda junto à Justiça para custear tratamentos; vigia ateou fogo na creche em outubro de 2017.

Após um ano da tragédia na Creche Gente Inocente, que deixou 14 pessoas mortas em Janaúba, no Norte de Minas, as famílias ainda buscam amparo e lidam diariamente com a dor. A estrutura de uma casa que era utilizada como creche se tornou cenário de horrores depois que um vigia jogou álcool nele e nas crianças e ateou fogo. Dez crianças morreram, três professoras e o vigia Damião.

Cinquenta pessoas ficaram feridas e dezenas de crianças que foram queimadas passaram a depender integralmente dos pais. A faxineira Fernanda Silva se tornou dona de casa para ajudar a filha, de 6 anos, que se queimou durante o ataque.

 Raissa ficou gravemente ferida durante o incidente e desde então depende do cuidado integral da mãe — Foto: Juliana Gorayeb/G1

Raissa ficou gravemente ferida durante o incidente e desde então depende do cuidado integral da mãe — Foto: Juliana Gorayeb/G1

A criança teve lesões graves na pele e passa dias e noites em frente a um climatizador de ar que os pais compraram graças a doações que receberam. Ela ainda precisa da mãe para que passe protetores e cremes na pele dela o tempo inteiro. Além das consequências físicas, Fernanda conta que é o comportamento da filha que mais a preocupa.

“Tem hora que ela fica triste, fica com medo. Mudou muito o comportamento dela, ainda mais porque ela não pode sair. Hoje se a gente fala um pouco mais alto ela começa a chorar, se esconde da gente. Teve uma vez que um menininho riu do rosto dela, ela chorou tanto e me perguntou se ia ser sempre assim. O que eu vou responder? Ela até pega minhas maquiagens, passa escondido tentando esconder o rosto, minha filha nunca vai ser o que era antes. Ela não aceita ver crianças brincando, irem para um rio, porque ela também queria. É muito difícil explicar isso a ela”, lamenta.

As condições da menina preocupam a família, que afirma não ter condições de custear o tratamento. Fernanda relata que a filha até teve acompanhamento psicológico no começo, mas agora precisa pegar a fila do SUS, caso queira continuar. Além disso, a bolsa de R$ 1 mil paga pela prefeitura tem boa parte destinada a arcar com as contas de energia que dispararam por conta do uso do climatizador durante o dia inteiro. Para os medicamentos e uma faixa especial que a menina precisa aplicar na pele, sobra pouco ou nem sobra, de acordo com a mãe.

“A faixa de tela mesmo ela não usa mais. Em Belo Horizonte eles deram, mas ela cresceu e não serve mais, ficou apertado. Eu acho que ela tinha que usar em um calor desses, como eu posso deixar essa menina colocar a cara na rua com a chance de ter um câncer de pele? A pensão acaba em dezembro e não sei como vamos fazer”, diz.

Na época da tragédia, o marido de Fernanda tinha emprego fixo, mas como se ausentou por muitas semanas para acompanhar a filha no tratamento em Belo Horizonte, acabou ficando desempregado. Agora, a família sobrevive através da pensão que recebe da Prefeitura de Janaúba desde que houve o acidente, e dos serviços que o pai consegue de vez em quando como carregador de bananas.

 Valdirene guarda fotos do filho e tenta conviver com as lembranças desde que ele morreu — Foto: Juliana Gorayeb/G1

Valdirene guarda fotos do filho e tenta conviver com as lembranças desde que ele morreu — Foto: Juliana Gorayeb/G1

A dor da família de Fernanda também é compartilhada com outras mães, como a balconista Valdirene Santos. Ela não teve chance de cuidar do filho, porque o Mateus, de 5 anos, teve praticamente todo o corpo queimado. Ele chegou a ser internado em um hospital de Montes Claros por quatro dias, mas não resistiu.

“O que mais machucou é que nos quatro dias internado eu não pude dar um beijo nele, tocar nele. Só pude beijá-lo quando não estava mais entre nós. Pedi para os médicos tirarem as faixas porque eu queria ver, eu queria pegar ele no colo. Beijei muito, abracei muito. Eu pedi ele perdão porque eu pedi para que ele voltasse, mas era impossível. Era egoísmo da mamãe”, diz emocionada.

Valdirene conta que reúne forças todos os dias para seguir em frente. Depois de não conseguir mais viver na casa onde morava com o Mateus, ela se mudou e mora ao lado dos pais, onde cuida das duas filhas mais velhas.

Na casa nova, a mãe ainda tem muitas fotos do menino nas paredes e na estante. Em um porta-retrato, ela guarda o folheto da missa de sétimo dia do filho. Ainda em meio ao luto e às lágrimas, Valdirene encontra fé para agradecer a Deus.

“Esse ano que passou foi muito de oração, de pedir muito a Deus força e agradecer pelas noites difíceis superadas. Porque elas são difíceis, é no silêncio que bate a tristeza, mas eu agradeço por ter convivido com ele, por ter força para cuidar das minhas filhas. Se eu já amava minhas filhas hoje amo muito mais, cuido mais”, afirma.

A balconista se emociona ao lembrar do quanto o filho foi especial. “O dia 5 de outubro nunca vai ser esquecido por mim. Foi o dia que meu filho se queimou e para mim o dia que o perdi. Não pude mais vê-lo sorrir, falar com ele. Eu lutei tanto por ele, sabe? Meu sonho era ter um menino. Eu queria meu menino. Ele nasceu com problema, mas foi curado. Acho que porque ele tinha um jeito especial de conquistar as pessoas, era um menino de luz. Quando eu cheguei no hospital, eu vi a médica chorar. Ela disse que ele a transmitiu paz, luz, disse que nunca ia esquecê-lo. O meu filho foi aplaudido pelos médicos, tinha cativado a equipe. Isso me fortaleceu”, conclui.

União contra a dor

 Associação foi criada por familiares das vítimas para arrecadar doações que custeiem o tratamento dos feridos — Foto: Juliana Gorayeb/G1

Associação foi criada por familiares das vítimas para arrecadar doações que custeiem o tratamento dos feridos — Foto: Juliana Gorayeb/G1

Sete meses após o incêndio, as famílias das vítimas que sobreviveram criaram a Associação de Familiares e Vítimas da Tragédia de Janaúba. Os envolvidos se uniram para conseguir recursos financeiros e ajuda médica para as crianças e funcionários do local. No total, a entidade recebeu R$ 215 mil em doações através de um grupo de empresários e materiais para cuidados da pele, como luvas, soros, ataduras e outros.

Segundo a fiscal da associação, Flávia Nunes Rocha, todo o valor só pode ser gasto com medicamentos ou cuidados para o bem-estar dos pacientes. Além disso, o procedimento adotado é buscar ajuda pelo SUS e, caso haja demora e urgência, tentar via particular.

“O dinheiro só pode ser gasto com medicamentos. Quando precisa de algo que o município não atende, aí a gente passa o dinheiro. Em meio a tanta dor, fomos orientados a formar a associação para recebermos ajuda e assim foi feito, unimos familiares e vítimas e criamos. A dor de um é a dor de todos”, garante.

Flávia tem um filho de 3 anos que não sofreu ferimentos na pele, mas inalou fumaça e precisou ser internado em Montes Claros com problemas pulmonares. Como ela precisa trabalhar como faxineira, o menino voltou a estudar na mesma creche, que foi reformada em março deste ano e recebeu o nome da professora Helley de Abreu, que morreu tentando salvar as crianças. Apesar do novo espaço, a mãe conta que não tem boas lembranças.

“Continua sendo complicado, porque nós que tivemos as crianças como vítimas e muitas delas ainda estudam lá. Mudou o cenário, mas ainda é o mesmo ambiente, um lugar que já teve muitos gritos, desespero, mortes. Levo meu filho ainda porque preciso, mas não é fácil”, diz.

Providências legais

 Defensor público se emociona ao relembrar casos de crianças que sofreram queimaduras — Foto: Juliana Gorayeb/G1

Defensor público se emociona ao relembrar casos de crianças que sofreram queimaduras — Foto: Juliana Gorayeb/G1

A Defensoria Pública de Minas Gerais que acompanha o caso em Janaúba tem tentado junto à Justiça minimizar o sofrimento das famílias e proporcionar a elas o amparo de que precisam. Além das ações individuais que tramitam na comarca da cidade, um processo de 13 volumes e milhares de páginas acolhe pedidos de familiares, tanto de acesso a tratamentos clínicos quanto indenizatórios.

O defensor público responsável pelo caso, Gustavo Dayrell, explica que uma ação civil pública foi protocolada no dia 20 de novembro e que as demandas das famílias são muitas. Para ele, o desejo da defensoria não é que o município seja enquadrado como responsável pelo ataque, mas se responsabilize pelas consequências de um incidente que ocorreu sob a custódia da prefeitura.

“O município tem a custódia das crianças, o vigia é servidor público e é evidente que pelas condições precárias que a creche tinha o resgate foi dificultado. Se houvessem condições melhores, pelo menos os danos da ação seriam reduzidos. Por isso entende-se que há o dever por parte da prefeitura de indenizar. A prefeitura já reconheceu e paga um valor inicial”, afirma.

Segundo Dayrell, algumas providências já foram tomadas graças a um acordo firmado entre o Ministério Público e Prefeitura de Janaúba. Antes da sentença final, o município tem pagado valores de R$ 6 mil em casos de vítimas feridas e de R$ 12 mil como indenização a famílias de vítimas que morreram. A quantia foi dividida em 12 parcelas, que acabam em dezembro deste ano. O defensor explica que uma liminar protocolada por ele foi negada, mas que a indenização paga pela Prefeitura de Janaúba provavelmente se trata de um valor inicial que deve ser complementado.

“O acordo foi celebrado sem discussão familiar. Ainda não há indício de novo acordo. A ação da defensoria permanece para que o juiz estabeleça um valor complementar. Ficaram os pedidos finais que seriam danos morais individuais diretos e reflexos. Os valores devem ser fixados levando em conta cada caso. Houve também o pedido de indenização por danos estéticos e patrimoniais que cada um sofreu, levando em conta o que cada família deixou de ganhar por deixar de trabalhar”, considera.

O defensor conta que acompanha o caso das vítimas que não estavam na creche no momento do ataque, mas sofreram ferimentos e sequelas graves porque tentaram socorrer as crianças ao tirá-las do fogo. “São famílias extremamente pobres, carentes, que precisam de amparo. Além de precisarem se dedicar aos filhos neste momento, tem despesas altíssimas que não conheciam, como remédios, faixas e tratamentos. O SUS não dá conta da demanda aqui na cidade. Vamos tentar reembolsá-las e minimizar as dores de todos que estiveram envolvidos”.

O que diz a prefeitura

Prefeito de Janauba garante que demandas têm sido cumpridas e que tudo consta em relatório que já apresentou ao MP — Foto: Juliana Gorayeb/G1

Prefeito de Janauba garante que demandas têm sido cumpridas e que tudo consta em relatório que já apresentou ao MP — Foto: Juliana Gorayeb/G1

Em entrevista ao G1, o prefeito de Janaúba, Carlos Isaildon Mendes, afirmou que falar sobre a data 5 de outubro não era oportuno. “Não vamos mexer em ferida que está cicatrizando. Janaúba sofreu demais, os pais sofreram muito e até eu sofri demais”, disse.

Sobre a insatisfação das famílias em relação aos valores indenizatórios e amparo clínico oferecido pela prefeitura, Isaildon afirma que faz o que pode dentro dos trâmites legais e que nunca vai conseguir agradar a todos. “Se perguntar, algumas mães vão estar insatisfeitas, porque sempre vão estar. Nunca agrada todo mundo. Tem mãe reclamando que precisa de pneumologista, mas ela pode pedir que vamos repetir: ‘precisa do encaminhamento da médica do PSF’. Temos tudo registrado dos encaminhamentos que já fizemos”, diz.

O prefeito de Janaúba foi questionado ainda sobre as condições de segurança que eram oferecidas às crianças e professoras na época do incidente, e sobre a contratação do vigia responsável pelo ataque. Ele disse não acreditar que ter extintores ou equipamentos de segurança no local ajudariam.

“As torres gêmeas tinham todo o aparato e mesmo assim aconteceu. Não adianta ter extintor, medida de segurança, ia acontecer do mesmo jeito. Foi um acidente”, disse o prefeito.

As famílias e defensoria têm requerido ao prefeito um acompanhamento pelo menos psicológico e ajuda de custos nos medicamentos, mas Isaildon afirmou que a prefeitura já faz o necessário. “Nós não podemos dar além do que a lei nos permite. Não posso dar dinheiro público ao privado sem autorização”.

Ao ser questionado se as famílias têm condições de esperar pela fila do SUS para que tenham atendimento especializado, o prefeito disse não saber comentar. “Eu não posso achar nada. Quem tem que opinar é a ciência, os profissionais, os médicos e psicólogos que já são contratados pelo município. O que podemos garantir é que as demandas que nos chegam, quando os encaminhamentos são tragos corretamente, todos foram atendidos. Está tudo registrado em relatório”, conclui o prefeito.

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