Religião
A tristeza, nós e Deus
Compartilhe:
O gravíssimo pecado de Davi nos ensina uma poderosa lição sobre a tristeza enquanto efeito do pecado, e a oportunidade de arrependimento que esse sentimento representa.
Texto base:
“Tem misericórdia de mim, ó Deus, por Teu amor; por Tua grande compaixão apaga as minhas transgressões. Lava-me de toda a minha culpa e purifica-me do meu pecado. Pois eu mesmo reconheço as minhas transgressões, e o meu pecado sempre me persegue. Contra Ti, só contra Ti, pequei e fiz o que Tu reprovas, de modo que justa é a Tua sentença e Tens razão em condenar-me. Sei que sou pecador desde que nasci, sim, desde que me concebeu minha mãe. Sei que desejas a verdade no íntimo; e no coração me ensinas a sabedoria. Purifica-me com hissopo, e ficarei puro; lava-me, e mais branco do que a neve serei. Faze-me ouvir de novo júbilo e alegria; e os ossos que esmagaste exultarão. Esconde o rosto dos meus pecados e apaga todas as minhas iniquidades. Cria em mim um coração puro, ó Deus, e renova dentro de mim um espírito estável. Não me expulses da Tua presença, nem tires de mim o Teu Santo Espírito. Devolve-me a alegria da Tua salvação e sustenta-me com um espírito pronto a obedecer. Então ensinarei os Teus caminhos aos transgressores, para que os pecadores se voltem para Ti. Livra-me da culpa dos crimes de sangue, ó Deus, Deus da minha salvação! E a minha língua aclamará à Tua justiça. Ó Senhor, dá palavras aos meus lábios, e a minha boca anunciará o Teu louvor. Não Te deleitas em sacrifícios nem Te agradas em holocaustos, se não eu os traria. Os sacrifícios que agradam a Deus são um espírito quebrantado; um coração quebrantado e contrito, ó Deus, não desprezarás” –Salmos 51:1-17 (NVI)”.
Contexto
Davi cedeu ao impulso ao ver uma mulher casada e provavelmente muito bonita chamada Bate-Seba tomando banho no terraço e, abusando de sua autoridade como rei, mandou leva-la até seu palácio e se relacionou com ela.
Alguns teólogos se referem à situação como um estupro, mas o autor do texto em 2 Samuel 11 e 12 não usa esse termo para a situação. O mesmo autor, no capítulo 13, trata uma relação sexual forçada entre Amnom e Tamar, dois filhos de Davi, como “violência”. Portanto, é possível concluir que, de alguma forma, Bate-Seba consentiu essa relação, mesmo sendo casada.
Um pecado é sempre uma desgraça com potencial infinito de dano. Davi, então, passou a arquitetar um plano para encobrir o seu próprio erro, e mandou chamar o marido de Bate-Seba, Urias, para uma audiência com o rei na capital. Seu plano era fazê-lo aproveitar a passagem pela cidade para que ele fosse à sua casa e matasse a saudade da esposa. O texto bíblico é claro nesse ponto.
Contudo, Urias sente que seria injusto que ele fosse dormir com sua esposa enquanto seus irmãos de batalha dormiam ao relento ou em cabanas improvisadas no front. Assim, ele fica na porta do palácio, dormindo com os guardas do rei. Ao saber disso, Davi percebe que seu plano deu errado e resolve embriagar Urias, para que ele fosse para casa e, dormindo ou não com a esposa, a gravidez de Bate-Seba ficasse subentendida como sendo fruto de uma relação legítima.
Mais uma vez o plano de Davi é frustrado, pois mesmo bêbado, Urias era um homem de convicções fortes e, novamente, dormiu na porta do palácio. Já sem paciência, o rei escreve uma carta para o general Joabe e incumbe o próprio Urias de leva-la. No texto, ordena que Urias fosse colocado no front onde a batalha fosse mais violenta, sem proteção contra os inimigos, para que morresse. E dessa forma aconteceu.
Quando a notícia da morte de Urias chegou, Bate-Seba chorou pelo marido, mas tão logo os dias de luto formal se passaram, Davi mandou levar Bate-Seba ao palácio e se casou com ela.
Davi pecou de forma recorrente e insistente contra Deus. O primeiro pecado é contra o povo de Israel. O rei, enquanto Israel guerreava, deveria estar na frente de batalha. Os reis foram levantados em Israel para liderar o povo nas guerras, dentre outras funções que são narradas nos livros de 1 e 2 Reis.
O segundo pecado é a cobiça à mulher alheia. Assim como Adão, Davi viu algo que não lhe era permitido e agiu para ter o que não podia, abusando de sua posição de autoridade (o autor de 2 Samuel enfatiza que Deus havia colocado Davi naquela função para liderar o povo). Que outro homem em Israel, vendo uma mulher bonita, seria obedecido ao mandar leva-la até ele?
O terceiro pecado envolve sua família. Ele traiu suas esposas e filhos ao desonrar a própria família e jogar sobre eles as consequências que são narradas nos capítulos de 2 Samuel posteriores à repreensão do profeta Natã.
O quarto pecado é contra Bate-Seba. Ela tem um comportamento duvidoso, sim. Porque tomar banho nua de portas ou janelas abertas, estando sem o marido? Porque não denunciar o convite do rei para leva-la à cama, sendo casada? Mesmo assim, Davi é o responsável pela situação. Foi Davi que cobiçou e colocou todo seu poder em ação para ter o que não era seu.
O quinto pecado é contra Urias. Davi tenta manipula-lo em duas circunstâncias, e diante do fracasso, planeja friamente sua morte. Davi se torna um assassino. As mortes que Davi havia causado com as próprias mãos antes nunca pesaram como assassinato contra ele diante de Deus (por exemplo, o gigante Golias). Mas essa trama maligna “desagradou ao Senhor” (2 Samuel 11:27).
O sexto pecado é contra os soldados que morreram ao lado de Urias quando o general atendeu o pedido de Davi e os enviou para a morte certa.
Esse combo de pecados o leva à condição de profunda tristeza que ele próprio narra, após seu arrependimento, no Salmo 51.
Exposição
O Salmo de Davi é um registro sincero de arrependimento, e a tristeza do rei fica evidente em cada uma das palavras que ele registrou para a posteridade em mais de uma vez.
Entretanto, é possível conhecer o que Davi passou e descobrir que esse arrependimento não se deu por completo de maneira imediata.
No Salmo 38, Davi descreve um estado de depressão profunda. Ele diz que se afoga em suas culpas, que sente taquicardia, que seus ossos doem, que há feridas por todo o seu corpo que cheiram mal e produzem pus. E que ele chora dia e noite, enquanto vagueia.
É uma descrição literal do que o apóstolo Paulo conceitua em Efésios 2:1 sobre estarmos “mortos em delitos e pecados”.
Davi pede a Deus misericórdia no Salmo 38, mas é no Salmo 51 que ele confessa sem reservas seus pecados.
O rei, ao longo do Salmo 51, resume a jornada de alguém que serve a Deus e é submetido ao processo de santificação. Ele entende que só Deus pode consertar o abismo dos pecados e que, uma vez que a redenção entra em cena, o caminho natural é que o crente anuncie a mensagem de salvação.
(51:1) Admissão de culpa. Davi entende que fez tudo que não deveria. Quando foi confrontado pelo profeta Natã (2 Samuel 12), o rei não pôde se esquivar de sua culpa. “Você é esse homem!” (2 Samuel 12:7).
(51:2,3) Quando Davi pede para ser lavado de sua culpa, ele demonstra sentir-se sujo por suas próprias ações. É como se o mal cheiro das feridas fossem um lembrete perceptível e constante de seus erros. “Meus pecados pecados me perseguem”.
(51:4) Davi compreende que pecou contra muita gente, mas porque aqui diz que pecou apenas contra Deus? É uma afirmação profunda de que a raiz do pecado é a rebelião contra Deus, desde o Éden.
No jardim, Eva cedeu às falsas promessas da serpente e convenceu Adão ao mostrar-lhe o fruto. Em Jerusalém, Davi viu o que não poderia desejar, cobiçou e convenceu Bate-Seba a fazer o que não deveria. Ordem inversa de fatores, mas que não alteram o produto resultante: pecado.
(51:5) Aqui, o rei admite a depravação total da humanidade. Aqui, Davi expõe a teologia que desmente o humanismo pagão do nosso tempo; refuta a ideia base da sociologia, proposta por Jean Jacques Rousseau de que o homem é essencialmente bom, mas o ambiente à sua volta o corrompe.
Depravação total não significa que todas as pessoas são depravadas no máximo de suas capacidades. Significa que toda a humanidade foi corrompida pelo pecado e que cada ser humano tem inclinação ao pecado em todas as áreas da vida. O apóstolo Paulo diz em Romanos 3:23 que “todos pecaram e estão destituídos da glória de Deus.
O ídolo da autoajuda
Um dos temas atuais que se correlacionam com a tristeza em nosso tempo é a autoajuda. O artigo “Cultura de autoajuda levou jovens à egolatria e à rejeição a Deus, alerta escritora cristã” apresenta um livro que fala denuncia a autoajuda como uma filosofia que se tornou um ídolo que tem cegado a muitos cristãos.
A autora, Allie Beth Stuckey, fala em You’re Not Enough (& That Okay): Escaping the Toxic Culture of Self-Love (“Você não é suficiente (e tudo bem): fugindo da cultura tóxica do amor próprio”) que a tristeza é uma evidência do pecado da egolatria, a adoração de si mesmo.
Ao longo do livro ela desenvolve o argumento de que a mera especulação de que o esforço em busca de autossuficiência seja a solução já é uma rebelião contra Deus, que enviou Seu filho para salvar aqueles que n’Ele creem. Jesus nos salva de nós mesmos. Se eu sou o problema por ser – como diz Davi – pecador desde a concepção, como é que mergulhar em mim mesmo trará alguma solução?
Confira algumas reflexões de Allie Beth Stuckey:
“Tudo começa com essa enorme e lucrativa indústria de autoajuda que começou muito antes da geração Y e da geração Z atingirem a maioridade. Dizia às pessoas: ‘Se você apenas seguir esses dez passos e se tornar melhor e se comprometer com o auto-aperfeiçoamento, sua vida será melhor. Você será mais feliz, mais rico, seus relacionamentos serão melhores’. […] É claro que há um pouco de verdade em tudo isso – não sou contra tomar certas medidas para tornar sua vida mais bem-sucedida – mas [essa ideologia] começou a se casar com a ideia da Nova Era de que você é seu próprio deus e que sua vida é apenas uma jornada para descobrir quem você realmente é, para encontrar aquela ‘deusa interior’”.
“Se você olhar para os índices de depressão e ansiedade entre os jovens, eles são muito maiores do que as gerações anteriores. Mesmo assim, continuamos ouvindo: ‘É por causa do déficit de amor-próprio; precisamos apenas fazer com que os jovens se amem mais, pensem mais em si mesmos, se concentrem mais no auto-cuidado e no auto-rejuvenescimento’. Não acredito na premissa de que temos um déficit de amor próprio […] Não acho que haja qualquer indicação na sociedade de que não tenhamos foco em nós mesmos. Somos infinitamente obcecados por nós mesmos”.
“Compramos a mentira de que o amor-próprio é o precipício, isso significa que vamos jogar de lado qualquer coisa que nos incomode, qualquer coisa que pensemos que vai inibir nosso amor-próprio ou cuidado próprio. Sim, há muito autossacrifício e muito auto-esvaziamento que vem com, por exemplo, amizades saudáveis ou trabalho árduo. Há muito sacrifício que vem com o casamento e que vem com ter filhos. Essas também são algumas das maiores fontes de alegria e estabilidade que podemos encontrar”
“Todos são feitos à imagem de Deus. E porque fomos feitos por este Criador, fomos todos criados iguais. Dessa forma, todos nós temos o mesmo valor. Todos nós temos o mesmo valor. Ser feito à imago Dei significa que cada pessoa na terra é mais valiosa do que qualquer outra planta, animal ou criatura. Agradecemos o trabalho de Deus em criar nossos corpos, nossas mentes e nossas vidas”.
(51:6,7) Aqui Davi entende que precisa ser transformado de dentro para fora, que somente o Criador, em Sua Santidade, pode redimir. A referência à erva hissopo, mais uma vez, remete à pureza.
(51:8) Ele entende que não há meios de se livrar da tristeza se ele não for resgatado da iniquidade, e que se Deus estender sobre ele a misericórdia, os efeitos dessa tristeza serão anulados.
(51:9,10) Um pedido sincero de Davi. Ele anseia desesperadamente para que Deus, em Seu poder, apague sua perversão. Esse é o significado mais básico de iniquidade. Ele entende o grau e extensão da maldade que cometeu com Urias. Entende que a vida de inocentes foram perdidas por conta de sua cobiça, em especial, a de seu filho com Bate-Seba.
(51:11) Precisamos recuar para nos lembrarmos de Saul. Em suas reflexões, Davi certamente se lembrou do rei que o antecedeu e a quem ele havia servido, e que como o profeta alertou, se tornou rejeitado por Deus.
É certo que Davi, sabendo a gravidade do seu pecado, temeu que Deus o removesse da posição de rei sobre Israel, pois havia um precedente. Então, por medo de que fosse retirado do trono e caísse nas mãos de seus inimigos (no Salmo 38 ele diz que seus inimigos tramam contra ele), e que as consequências disso se estendessem sobre o povo, levando a nação a ficar desguarnecida e vulnerável contra os povos inimigos, ele pede a misericórdia de Deus.
(51:12) Esse é o texto central desse salmo. A tristeza havia levado Davi ao arrependimento. Poderia tê-lo levado ao remorso, como aconteceu com Judas Iscariotes, que ao trair Jesus e se dar conta de seu erro, tentou desfazer o negócio. Como não deu certo, se matou.
Remorso não é arrependimento. A tristeza é um terreno que permite brotar essas duas reações. Uma pessoa que entende seu erro, mas ao invés de pedir perdão, tenta contornar os problemas decorrentes de seu erro por conta própria, tenta seguir a vida colocando uma pedra sobre o assunto, tem remorso.
O que Deus quer de nós é arrependimento. Um arrependimento como o do filho pródigo, que disse para seu pai que, a seu ver, ele era melhor morto do que vivo. É esse o resumo da parábola que Jesus conta em Lucas 15. Quando o caçula pede sua parte na herança, é como se dissesse “já que você não morre logo, me dê o que eu herdaria quando você morrer para eu ir viver a minha vida”.
Ele esbanja, e muito tempo depois, quando não tem mais os falsos amigos à sua volta, quando não tem mais dinheiro para comprar prazeres, quando se vê desejando as vagens que os porcos comiam, sem que ninguém lhe desse nada, ele se lembra que até mesmo os servos de seu pai viviam em melhores condições que aquela na qual ele se encontrava.
E ele decide voltar. Reconhece seu pecado dizendo que não tinha méritos próprios para ser chamado de filho, mas queria ser recebido como um servo. O arrependimento é visto pelo pai da parábola como sincero, e sua resposta ao filho é um banquete.
Jesus diz que há “alegria no céu quando um pecador se arrepende”. O pai do filho pródigo explode em festa e diz que um filho que estava morto foi achado.
E é dessa alegria que Davi fala. É dessa alegria em Deus que Davi pede. Ele sabe que não perdeu a salvação. Ele entende que seu pecado o levou à tristeza, distante da alegria da salvação. E ele sabe que só Deus pode restaurar essa alegria.
(51:13-15) Alguém resgatado da opressão do pecado não consegue se calar. Não consegue brincar de agente secreto do reino de Deus. O pensamento “sou crente, mas minha fé eu vivo na minha vida privada, em público eu vivo de maneira discreta” é típico de quem não entendeu a dimensão da obra redentora de Jesus Cristo.
Quem entende o tamanho da anistia que a cruz representa, sabe da própria culpa e como esse perdão alivia a alma. Essa alma quer cantar aos quatro cantos que a justiça de Deus foi saciada na cruz de Cristo e que há perdão para aquele que crê no Messias.
Como diz o hino Segurança, do “Cantor Cristão”, “vivo feliz, pois sou de Jesus, e já desfruto o gozo da luz […] Canta minh’alma, canta ao Senhor, rende-lhe sempre ardente louvor”.
(51:16) Deus não quer sacrifícios como meros rituais. Estar na igreja por hábitos; fazer jejum por hábito; ofertar por hábito. Nada que não seja fruto de um arrependimento profundo, consciente, agrada ao Pai. Se não for assim, qualquer ação é mera penitência, é mero remorso.
(51:17) A tristeza é um caminho que Deus pavimenta para que nos arrependamos de nossos erros, que nos prostremos diante d’Ele, com o coração sincero, e assim Ele possa transplantar o coração de natureza inclinada ao erro por um coração disposto a obedecer.
Aplicação
Mateus 11:27-30: “Todas as coisas me foram entregues por meu Pai. Ninguém conhece o Filho a não ser o Pai, e ninguém conhece o Pai a não ser o Filho e aqueles a quem o Filho o quiser revelar. Venham a mim, todos os que estão cansados e sobrecarregados, e eu lhes darei descanso. Tomem sobre vocês o meu jugo e aprendam de mim, pois sou manso e humilde de coração, e vocês encontrarão descanso para as suas almas. Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve” (NVI).
A tristeza em cada um de nós pode ter inúmeras razões, mas a solução não está no remorso, não está em um esforço pessoal de ser uma versão melhor de si mesma (embora isso seja desejável, não pode se tornar um ídolo em nosso coração).
A solução para a tristeza está no arrependimento diante de Deus para que ele restaure em nós a alegria que a salvação através de Jesus Cristo nos proporciona.
https://estudos.gospelmais.com.br