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A indiscutibilidade da coisa julgada
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Desci do púlpito levinho, levinho, por não ter ministrado a lição do dia, como seria o usual nestes últimos dez anos, e participei da Ceia do Senhor em paz, sem senão algum, no domingo dia 02 de setembro de 2018.
Não que o assunto fosse controverso ou complicado: a monarquia de Israel. Teria sido até agradável. Depois que me mudei para Petrópolis, aqui no Rio de Janeiro, e vez por outra admiro a estátua de Dom Pedro II sentado – gosto mais dessa do que da que ele está de pé. Nessa, ele está acomodado numa poltrona, tem um livro numa das mãos marcando a leitura com o dedo indicador e a outra está com dois dedos apoiados na têmpora esquerda, considerando alguma questão mais reflexiva que intrigante.
Certamente, na lição, eu refletiria como o rei Davi teria agido caso Benjamim Constant quisesse lhe passar a perna e instaurar a república.
Caminhei pela saída lateral, a fim de evitar muitas despedidas e retornar rápido de Nova Iguaçu para a cidade imperial. Não fui muito feliz nessa estratégia. Dois pastores que eu não conhecia pararam para me cumprimentar e ficamos conversando animadamente, apesar do pastor ter convocado todos os dirigentes de congregação para uma reunião que já havia começado.
Um deles se despediu e percebi que o outro se preparava para me perguntar alguma coisa quando uma voz feminina chamou solenemente por meu nome:
– Irmão Fernando!
Olhamos pra ela que disse sem rodeios:
– Eu gosto de falar com o irmão, porque o irmão olha a gente nos olhos! – disse, mais como uma acusação do que um elogio. E acrescentou:
– Os jovens de hoje não têm paciência com gente velha!
Eu apertei-lhe a mão e cumprimentei-a com a Paz do Senhor. Não me atrevi a mais, pois, confesso, não lembrava o seu nome.
Ela deu um olhar de maçarico de cortar vergalhão para o pastor sem lhe dizer nada. Ele, talvez por uma revelação divina que não me atingiu, achou por bem de perguntar se ela aceitava um abraço. Eu me lembrei que conflitos mundiais já começaram por esse tipo de liberdade inesperada. Ela, com uma cara que estava entre enfezada ou condescendente. Fez um meneio de cabeça tão magnânimo que me pareceu uma deferência única entre querubins.
Ele não se fez de rogado e abraçou-a com a disposição de quem comemora o aniversário. Permaneceu assim por alguns instantes de olho fechado e tudo o que um abraço sincero e respeitoso pode ter.
Acredito que, se Deus tivesse me dado o dom da clarividência da interpretação de pensamentos, eu poderia jurar que ele estava orando por ela. Foi o sentimento que a cena me trouxe, igualzinho como quando eu abraço minha mãe. Não pude ser melhor intercessor do momento, porque senti uma mão me puxar pelo ombro e o dedo em riste veio quase no meu nariz, enquanto a voz me dizia:
– Fernando, me espera, porque eu preciso falar contigo.
Olhei e vi que era outro professor da EBD quem me intimava. Quando me voltei para o abraço, ela já havia desaparecido. Não sei se arrebatada ao banheiro, ou à cantina, ou ao ônibus. Não sei.
O pastor me olhou e disse tragicamente:
– Existem pessoas na igreja que só precisam de um abraço afetuoso para vencerem quaisquer adversidades e serem totalmente felizes.
Nem tive tempo para refletir qualquer opinião sobre o que dizer, pois vi que uma lágrima grossa descia dos seus olhos e uma expressão sofrida tomou todo o seu rosto. Ele trouxe a mão direita em garra para o peito encolhido como se fosse arrancar o coração e espreme-lo ali mesmo, na minha frente.
– A gente sente uma dor inexplicável, sabe? É uma dor insuportável… Hesitou um pouco e disse:
– Você ficou sabendo do pastor americano que se suicidou? Igreja de Inland Hills. Acho que é na Califórnia. Tinha 30 anos, o que se pode julgar disso…
Ele não perguntou, cogitava apenas. Foi o que pude entender.
Sem alcançar um esclarecimento pessoal que pudesse estabelecer qualquer parâmetro de julgamento, minha mente me levou para um artigo da revista Obreiro, de orientações para a administração eclesiástica, onde se alertava das duas principais causas de morte entre os pastores: derrame e infarto. Engoli em seco.
Ele deu um suspiro profundo, limpou o rosto, aprumou-se, olhou nos meus olhos, me deu uma palmada vigorosa no braço esquerdo e disse quase brada’:
– É isso aí, irmão Fernando, o crente precisa ter postura! Tem que ter postura! Dá licença que eu vou pra reunião…
E saiu sem olhar pra trás.