Saúde
Com avanço de leis estaduais, cannabis medicinal deve chegar ao SUS pelo Legislativo
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Congresso Nacional avalia projetos de lei que garante o fornecimento de cannabis medicinal a pacientes do SUS.
No final de janeiro, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, sancionou uma lei que garante o fornecimento de cannabis medicinal pelo SUS. Outras iniciativas estaduais também ocorreram, como em Alagoas e Rio Grande do Norte, em 2022, e o Distrito Federal, ainda em 2016. Contudo, o tema ganha novo fôlego para voltar à pauta do Congresso Nacional.
Dois dos principais projetos de lei que correm conjuntamente no Senado Federal são o PL n° 89, de 2023, de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS), e o n° 4776, de 2019, do senador Flávio Arns (REDE-PR). Ambos tratam do fornecimento de canabidiol pelo sistema público em todo o Brasil e regulamentação para a produção e comércio por empresas.
Para o mercado, essas leis estaduais são consideradas uma tentativa de mudar o cenário, mas ainda muito iniciais frente à complexidade do tema. Falta uma regulação adequada e segurança jurídica às empresas. Da mesma forma, médicos alertam que é preciso se aprofundar nos estudos científicos para que não haja o fornecimento para condições em que não há comprovação científica, assim como ampliar o acesso para além do canabidiol, já que outros componentes também são importantes em alguns tratamentos.
A venda de cannabis medicinal nas farmácias cresceu 304% em 2022, o que mostra que esse é um mercado em ampla expansão. Também houve no período uma redução de 35% do preço médio desses produtos. O faturamento no varejo farmacêutico foi de R$ 63,3 milhões. Já nas importações, em 2022 a Anvisa emitiu cerca de 80 mil novas autorizações.
A aprovação de leis estaduais e federais para o fornecimento de qualquer medicamento requer atenção não apenas sobre o acesso, mas a segurança, qualidade e custo-efetividade. É de responsabilidade da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) realizar a Avaliação de Tecnologia em Saúde para dar uma recomendação sobre esses critérios e analisar se é economicamente viável ao SUS fazer esse fornecimento. Pular etapas pode trazer risco à saúde e à economia.
A expectativa, no entanto, é que haja a aprovação de ao menos alguma lei federal que coloque todos os temas envolvendo a produção, comercialização e distribuição na pauta, sendo necessário se aprofundar cada vez mais. “É ruim a forma que a gente está caminhando e, ao mesmo tempo, é como o mundo inteiro andou. Estamos avançando. Do jeito ideal? Nunca, mas nenhum país fez do jeito ideal. A gente precisa de um marco, e a partir daí vamos caminhar de um jeito diferente”, afirma Maria Eugenia Riscala, co-fundadora e CEO da Kaya Mind, consultoria sobre o mercado da cannabis no Brasil.
O caminho é o Legislativo
“O processo será no Legislativo. O PL em discussão tem uma boa perspectiva de tramitação e consequente aprovação, mas uma vez aprovada e sancionada, com vetos ou não, a operacionalização disso pode ser bastante complicada e irá impactar o mercado em um efeito cascata”, afirma a advogada Bruna Rocha, presidente da Associação Brasileira da Indústria de Canabinoides (BRCANN).
Tanto Rocha quanto Riscala acreditam que é pouco factível que o tema seja liderado pelo Governo Federal, dadas as questões políticas e ideológicas que envolvem a cannabis, com os temas científicos e econômicos ficando em segundo plano até então. Contudo, as leis estaduais que foram aprovadas mostram que em 2023 esses pontos parecem ter sido superados.
Isso porque há um entendimento da importância da cannabis para a saúde da população. Foi com esse argumento que o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) sancionou a lei em São Paulo. Ele afirmou que uma das motivações foi seu sobrinho, que convive com a síndrome de Dravet, condição que o óleo de canabidiol tem eficácia comprovada para a redução de convulsões.
“Tem muito mais a ver com composição de Câmara e Senado, que não está favorável e talvez estivesse mais favorável alguns anos atrás, mas é um tema que está fugindo da mão do parlamentar. Não tem mais como não aprovar, porque você tem muita gente com dinheiro vendo potencial nisso e não liga para direita ou esquerda para tomar decisão voltada para a economia”, afirma Maria Eugenia Riscala, da Kaya Mind.
No entanto, apesar das leis estaduais serem vistas como um pequeno avanço, a cofundadora da Kaya Mind afirma que funcionam mais como “barulho” do que como um ação prática, já que existem diversas barreiras para conseguir efetivá-las e criam disparidades entre as regiões.
Uma delas é a questão comercial, já que é preciso que os estados façam o levantamento de quantos pacientes podem ser beneficiados, qual a quantidade de produtos que deve ser utilizada – e na maioria dos casos, são de uso contínuo – e o impacto orçamentário que deve ocorrer. No âmbito Federal, a Conitec seria responsável por fazer essa análise, além de avaliar eficácia e segurança.
“Por mais que a iniciativa seja excelente até mesmo para a potencialidade econômica deste mercado e o acesso à saúde, pode ser que a forma de fornecimento abra margem para produtos que não estejam dotados de qualidade, segurança e eficácia sejam colocados no mercado, e usualmente por meio de associações”, afirma Bruna Rocha, da BRCANN.
Regulamentação atual
Atualmente a regulamentação que rege o tema é da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). É considerada muito incipiente, principalmente sobre questões de empresas que produzem óleos. Apesar da RDC 327/2019 ter sido uma importante ferramenta para aquele momento da cannabis no país, entidades defendem que é preciso avançar.
A grande maioria dos óleos no país possuem a Autorização Sanitária de Produtos de Cannabis, que possui validade de 5 anos. Expirado o prazo, as empresas vão precisar entrar com o registro como medicamento, o que requer pesquisas clínicas para verificar a segurança e eficácia dos produtos. A primeira autorização ocorreu em 2020.
“A Anvisa tem participado e acompanhado diversas discussões neste sentido, visando orientar as empresas à adequação, conforme previsão da RDC nº 327/2019. Em razão dessa demanda, além de discussões feitas avaliando caso a caso junto às empresas, orientações sobre pesquisa clínica com produtos derivados de cannabis podem ser encontradas no portal da Anvisa”, afirma João Paulo Perfeito, gerente de Medicamentos Específicos, Fitoterápicos, Dinamizados, Notificados e Gases Medicinais da Anvisa.
Existe uma linha de pensamento no mercado de cannabis que defende que haja diferentes categorias de produtos à base da planta, como ocorre nos Estados Unidos, por exemplo. Para Maria Eugenia, da Kaya Mind, esse é um caminho possível para a regulamentação no país, mas que deve demorar para chegar nesse patamar, já que os projetos de lei ainda não tratam do tema nesses termos.
“Com o medicamento a gente trata condições médicas mais sérias, com o suplemento a gente ajuda uma série de pessoas que estão buscando tratamento à base de bem-estar e com o fitoterápico a gente abre a possibilidade de farmácia de manipulação e as Associações entrarem nesse jogo. Tem espaço para todo mundo, players e pacientes”, afirma a CEO da consultoria.
Enquanto não é aprovada uma lei sobre o assunto no Congresso, a Anvisa planeja revisar a resolução, sendo tema da Agenda Regulatória 2021-2023 da agência, que está realizando uma Análise do Impacto Regulatório (AIR). Parte dessa etapa conta com a participação social, onde pacientes, médicos e as empresas participaram com contribuições, entre outubro e novembro de 2022, que estão sendo compiladas e serão publicadas em relatório.
“As etapas subsequentes no processo de regulamentação incluem a elaboração da proposta de texto normativo, divulgado na forma de Consulta Pública (CP), consolidação e análise das contribuições recebidas, elaboração do instrumento final, análise jurídica, deliberação pela Diretoria Colegiada da Anvisa (Dicol) e publicação da nova Resolução aprovada no DOU. Desta forma, seguindo o rito regulatório em andamento, esperamos em breve avançar com a conclusão da revisão da RDC nº 327/2019”, explica João Paulo Perfeito.
Eficácia comprovada da cannabis
Uma preocupação dos médicos e cientistas é que as leis para o fornecimento de cannabis medicinal no SUS tenham a ciência como norte, isto é, somente aquelas condições que tenham comprovação científica robusta, como é o caso de epilepsia grave refratária, espasticidade e dor neuropática, devem compor a lista das que podem receber o medicamento.
“Vai ter que ter uma certa regulamentação. Bastar a recomendação médica é pouco se for pelo SUS. Vai ter que ser feito com outros medicamentos, com um relatório completo explicando o porquê a pessoa precisa deles. Temos que preencher papéis pré-determinados relatando quais medicamentos o paciente utilizou e não surtiu efeito, qual o CID, por quanto tempo, e ser renovado periodicamente”, defende a neurologista Elisa Resende, vice-coordenadora do departamento científico de neurologia cognitiva do envelhecimento da Associação Brasileira de Neurologia (ABN).
A médica vê com bons olhos a iniciativa de incluir o medicamento no SUS, já que por ser um composto ainda muito caro, tem grande impacto na renda das famílias e acaba limitando o acesso de quem pode utilizá-lo. Ampliar o acesso é essencial para dar melhor qualidade de vida aos pacientes.
Resende também alerta que é necessário garantir a qualidade e segurança, e é preciso se atentar aos laboratórios que irão fornecer os componentes ao SUS, seja pelos estados ou a nível federal. O médico consegue se adaptar às diferentes composições, desde que haja uma bula com as informações necessárias.
Outro ponto levantado pela médica é o risco de ter um aumento de pacientes que já vão em busca do canabidiol, acreditando que serve para o seu quadro de saúde. “Tem que tomar cuidado com os predatórios, com aquela pressão pela prescrição. Vai ter que ter também educação aos pacientes para saberem que nem todo sintoma é tratado assim e que não cura nenhuma doença. A população precisa de mais esclarecimento”, afirma a médica.
Em tramitação
O projeto de lei de autoria do senador Paulo Paim está atualmente na Comissão de Assuntos Econômicos, aguardando distribuição e designação do relator. Contudo, é considerada uma das principais para avançar no Congresso, impulsionada pelas leis estaduais que surgiram ao longo dos anos.
“O tema não é pacífico, e ainda há muito desconhecimento do tema no Congresso. Exigirá muita mobilização da parcela da sociedade que necessita desses medicamentos”, afirma o senador Paulo Paim, que avalia que já há uma sensibilidade por parte de outros parlamentares sobre o fornecimento de cannabis no SUS.
O projeto de lei estabelece que o sistema público irá disponibilizar canabidiol, em associação com outras substâncias, como o tetrahidrocanabinol (THC), importante componente para tratamento de espasticidade, rigidez muscular e dor neuropática, e que é uma demanda de pacientes e médicos, já que o canabidiol de forma isolada não funciona para tais condições.
O senador afirma que, caso aprovado, o projeto de lei terá 90 dias para entrar em vigor, o que permite que outros órgãos como o Ministério da Saúde e a Anvisa possam adaptar suas normas. Nesse momento, caberá à Conitec realizar a Avaliação de Tecnologia em Saúde (ATS) e garantir a segurança, eficácia e custo-efetividade dos produtos incorporados.
“O apelo é crescente na sociedade e vários países importantes já caminham nessa direção. Precisamos avançar nessa agenda, e obter o apoio do Poder Executivo. É uma questão de saúde pública e que também diz respeito ao desenvolvimento científico e industrial do País”, conclui Paim.
Risco à concorrência
O projeto de lei do senador Paulo Paim possui um ponto considerado delicado pelas empresas do setor. O texto sugere que a compra dos medicamentos a serem distribuídos deve dar preferência às associações sem fins lucrativos e, em seguida, às empresas nacionais.
O senador defende que essas associações produzem e distribuem a seus associados os derivados de cannabis “a preços menores do que o produto importado. Elas cultivam, processam e extraem o óleo de cannabis, e já detém a expertise para serem fornecedoras do SUS”.
Contudo, esse é um ponto questionado pela Associação Brasileira da Indústria de Canabinoides (BRCANN), que afirma que ele deve ser revisto em qualquer lei que oferte produtos à base de cannabis pelo SUS porque pode colocar risco à concorrência nesse setor.
“A partir do momento que as associações dos pacientes se sentem confortáveis com o cultivo e produção para fins de fornecimento mercantilizado, sem crivo regulatório, é um benefício. Cliente regulado sequer pode cultivar, depende de importação do insumo para tal. Então, é uma questão concorrencial”, afirma a presidente da BRCANN, Bruna Rocha.
Diferentemente das empresas, as associações possuem autorização judicial para plantar cannabis e extrair o óleo de seus componentes, enquanto a indústria farmacêutica é regulamentada pela Anvisa e só pode importar o insumo farmacêutico (IFA) para a produção ou o produto final. Com isso, o custo fica mais elevado.
Para que empresas possam plantar e extrair os insumos necessários para a fabricação de óleos e medicamentos é preciso que seja aprovada uma outra lei. O PL 399/2015, de autoria do então deputado federal e atual governador de Sergipe, Fábio Mitidieri (PSD-SE), é considerado ideal por especialistas para resolver essa questão. Ele segue em tramitação, mas sua última atualização ocorreu em 2021.
A presidente da BRCANN ainda questiona a garantia da qualidade, segurança e eficácia dos óleos fornecidos pelas associações, já que segundo ela não passam pelos mesmos crivos que a indústria farmacêutica. Além da questão da produção local para que haja uma redução no preço do produto final, tornando mais vantajoso ao SUS, Bruna defende que é preciso ter uma concorrência leal:
“Capacidade de produção não tenho dúvida que as empresas tem, inclusive o Brasil é um grande polo de atenção para fins de pesquisa clínica, justamente por conta da capacidade instalada que temos”.
FUTURO DA SAÚDE