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Uso medicinal da cannabis: Conheça a luta de famílias que driblam o tempo para tratar seus filhos


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O relógio de mães e pais que precisam da cannabis para tratar seus filhos costuma correr mais rápido do que o normal. Para amenizar as dores das crianças, têm de driblar o tempo para entender o passado da proibição, o presente da ciência e o futuro da Justiça, revelando as contradições da guerra às drogas.

O tempo nem sempre foi amigo de Clárian. “Crianças com síndrome de Dravet não costumavam chegar à adolescência”, lembra a mãe, a ativista em prol da cannabis, a paulista Maria Aparecida de Carvalho, 55 anos, ao falar da condição genética rara, progressiva e incapacitante da filha, um tipo de epilepsia grave. “As crises convulsivas duravam mais de uma hora. Nós quase a perdemos várias vezes. Eu e meu marido vivíamos correndo contra o tempo.”

Para Cidinha, como é mais conhecida, a angústia que sentia ao ver o corpo da filha se contorcendo só não era maior do que a vontade de dissolver aquela dor. Em 2013, ela descobriu como. Não se tratava de um tratamento ultramoderno, mas de uma planta usada há milênios em lugares como a Índia: a cannabis sativa, também conhecida como maconha.

Na primeira vez que usou o óleo extraído da planta, aos 10 anos, a menina passou um dia inteiro sem crises. Um milagre, segundo a família. “Clárian batia a cabeça na parede e tentava arrancar os dentes. Agora, está mais controlada”, diz Cidinha, que é presidente da Cultive Associação de Cannabis e Saúde. “Faz nove anos que minha filha usa o óleo de cannabis feito artesanalmente por mim e pelo meu marido. E faz nove anos que nunca mais precisamos interná-la por causa da convulsão.” Aos 19 anos, ela voltou a fazer as pazes com o tempo.

Cidinha (à dir.) com  o marido, Fabio,  e a filha, Clárian — Foto: Divulgação

Cidinha (à dir.) com o marido, Fabio, e a filha, Clárian — Foto: Divulgação

Tempo do passado

 

Apesar do corpo adolescente, a cognição de Clárian é de uma criança de 8 anos. Como lembra Cidinha, as intensas crises de convulsão deixaram sequelas. Na tentativa de evitar que o mesmo aconteça com outras crianças, a ativista continua driblando o tempo. “Sempre falo para as mães iniciarem o tratamento o quanto antes. Vejo crianças que começaram a usar o óleo com 2 anos e, hoje, aos 6, estão bem”, detalha.

Assim como Cidinha, quem deseja entender a importância dessa questão também precisa driblar o tempo, mas, nesse caso voltar ao passado para compreender por que uma planta de uso milenar foi proibida. 

Uma das primeiras restrições do mundo ao uso da maconha aconteceu no Rio de Janeiro, em 1830, com a penalização de venda e uso do “pito do pango”, termo usado pelas pessoas escravizadas para designar a planta. Mas foi só depois da proclamação da República e do fim da escravidão,que o rascunho da proibição ganhou contornos mais bem acabados. Era o momento de transformar o país em uma nação “moderna”. Em 1932, um decreto nacional criminalizou o cultivo, a venda e a posse da cannabis. 

“Nesse contexto, as práticas e costumes negros, tão presentes em uma sociedade recém-saída da escravidão, representavam empecilhos para o lema ‘ordem e progresso’ pretendido pela elite política e intelectual”, escreveu a historiadora Luísa Saad no livro Fumo de negro: a criminalização da maconha no pós-abolição (Edufba). “Assim como o candomblé e a capoeira, a maconha estava associada aos africanos e seus descendentes, e seu uso, além de prejudicar a formação de uma República moralmente exemplar, poderia se disseminar entre as camadas ditas saudáveis – leia-se brancas – e arruinar de vez o projeto de uma nação civilizada.”

Pouco importava se os aspectos químicos e farmacológicos da maconha ainda fossem pouco estudados. De acordo com Saad, o conservadorismo e o pânico moral foram mais fortes do que a ciência, dando surgimento a um “projeto que buscou criminalizar, mais do que a planta, os que faziam uso dela”. Logo, não é difícil constatar que a proibição da maconha tem origem racista. 

De acordo com o 3º Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira, da Fiocruz, a maconha é a droga mais consumida no Brasil, mostrando que, em quase cem anos, os esforços contra a planta não surtiram efeito.

Fora do tempo

Se fosse pedido às pessoas que apontassem o tempo, muitas indicariam relógios ou calendários. Mas a forma como dividimos o tempo (entre horas, dias e meses…) não é como o Universo entende o tempo. Relógios e calendários são baseados nas voltas que a Terra dá em torno do Sol. Não fazem sentido em outros lugares do cosmos. Assim, dizer que o tempo do Universo é igual ao tempo do relógio seria reduzir uma dimensão complexa da realidade a ponteiros que apontam para o nada. Para algumas mães e pais que cultivam a maconha, reduzir a planta ao CBD, sem considerar outros canabinoides como o THC, é como reduzir o tempo. 

Considerando que a diferença entre o veneno e o remédio é a dose, esses pais e mães não veem sentido em destacar apenas uma das propriedades da cannabis. “Já usei o óleo de CBD isolado na minha filha, e ele não fez tanto efeito quanto o que continha outros canabinoides”, diz Cidinha, da Cultive. “Algumas pessoas podem dizer que o THC é psicoativo, mas o anticonvulsivante alopático que eu compro na farmácia também é, ele deixava minha filha dopada. Não existe nenhum vilão na maconha. O que existe é uma cultura proibicionista que implantou um estigma em relação à planta por interesses econômicos e morais”, desabafa.

Nesse sentido, ser a favor da cannabis medicinal e apoiar, ao mesmo tempo, a proibição do uso recreativo (ou social) é um paradoxo, segundo Cidinha. “Quem faz um uso social adulto de forma regular está buscando bem-estar. Também tem uma finalidade terapêutica”, acredita o advogado Emílio Figueiredo, referência do direito canábico no Brasil e idealizador da Rede Reforma. Para os ativistas, não há diferença entre o uso medicinal e o recreativo. “Separar o uso medicinal do uso adulto só vai trazer prejuízo ao desenvolvimento da sociedade. Precisamos de uma solução completa”, diz Figueiredo.

Ideia parecida foi sustentada pelo ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), ao declarar que “fumar um baseado” não é diferente de tomar um uísque ou tragar um cigarro para relaxar. “Não estou dizendo que é bom, apenas estou dizendo que o Estado não deve invadir essa esfera da vida”, ilustrou o magistrado, ao questionar a arbitrariedade da proibição, bem como sua ineficácia, o alto custo ao Estado e o incentivo ao tráfico. 

Tempo de justiça

 

A proibição do uso social faz com que muitos pais e mães que teriam condições de plantar o remédio a baixo custo, em casa, tenham de gastar pequenas fortunas em medicamentos que podem ou não funcionar – já que não há controle sobre o tipo de produto a ser adquirido. Para entender melhor: na farmácia, há dois produtos disponíveis, aquele à base de CBD puro e o que inclui componentes de diversas espécies. Como não são customizados para cada caso, nem sempre funcionam para a necessidade do paciente. Além disso, são muitas as famílias que não têm condições de pagar R$ 700 por um frasco de 30 ml, que dura de 15 dias a dois meses, dependendo da forma de utilização.

A farmacêutica Bruna Fernanda Dias, 39, é mãe de três crianças diagnosticadas com autismo severo: Mateus, 13, Rebeca, 7, e Isaque, 5. Ela chegou a gastar R$ 300 mil por ano com o tratamento dos filhos. “Não tinha controle de espécie, nem dos canabinoides”, lamenta ela, que aprendeu a plantar os próprios remédios. Para Magda Lahorgue Nunes, presidente do Departamento Científico de Neurologia da SBP, “o uso da cannabis deve ser feito de acordo com as indicações aprovadas por terem evidências científicas comprobatórias do benefício”. Porém, na prática, muito embora a recomendação médica seja seguir o que a ciência já comprovou, os pais, diante da urgência de melhorar o bem-estar dos filhos, avançam praticamente sozinhos em termos de descobertas de resultados positivos – eles trocam experiências entre si, e afirmam chegar a fórmulas mais apropriadas aos filhos, validadas depois com os médicos.

Bruna, o marido, Daniel, e os filhos, Mateus (de boné), Rebeca e Isaque — Foto: Divulgação

Bruna, o marido, Daniel, e os filhos, Mateus (de boné), Rebeca e Isaque — Foto: Divulgação

 

Como resume Cidinha, da Cultive: “Não é que o produto à base de cannabis vendido na farmácia não seja bom, mas ele não vai servir para todos. É mais padronizado, e o acesso é elitizado”.

No desespero de aliviar as dores dos filhos, algumas mães, como a própria Cidinha, no início de sua saga, já pensaram em recorrer à maconha em bocas de fumo, onde o controle de qualidade é menor ainda. Cultivar, para muitos, acaba sendo a única solução. Mas o medo de estar cometendo um ato ilegal inibe, com razão, muitas famílias.   

“Cuidar da saúde do filho jamais pode ser considerado um crime”, explica o advogado Figueiredo. “Na letra fria da lei, pode ser que cultivar cannabis seja considerado ilegal, mas, quando você tem uma necessidade médica, não faz sentido criminalizar pais e mães. Esse já é o entendimento dos principais tribunais brasileiros.” 

Plantar por conta própria é o que os cultivadores chamam de “desobediência civil”, uma alternativa de ação, já que o tempo da lei nem sempre corresponde ao tempo das crianças que lidam com doenças graves. Como explica Figueiredo, para se resguardar, é necessário que, primeiro, os pais tenham em mãos uma prescrição médica. Com isso, é preciso iniciar o cultivo – as próprias associações ensinam a fazer isso e a extrair o óleo – para só então fazer o pedido de habeas corpus e garantir o respaldo legal.

 

Marcio Pereira e Fernanda Peixoto são terapeutas canábicos — Foto: Divulgação

Marcio Pereira e Fernanda Peixoto são terapeutas canábicos — Foto: Divulgação

Tempo não é dinheiro

Outra alternativa a quem não pode pagar pelos produtos vendidos em farmácia ou consegui-los por intermédio dos planos de saúde (um direito garantido por lei) são os grupos que se unem para cultivar e oferecer remédio aos que não podem plantar. Com a prescrição médica, eles promovem o cultivo e conseguem o habeas corpus para se precaverem do risco de prisão – prática válida para quem faz isso individualmente.

Assim como a AHCB e a Cultive, a Associação Maria Flor também promove qualidade de vida por meio de produtos à base de maconha. Diferente dos outros grupos, no entanto, seus membros não tiveram tanta sorte com a Justiça. 

No final de 2018, o casal de terapeutas canábicos Marcio Roberto Pereira, 41, e Fernanda Peixoto, 42, cofundadora da Maria Flor, foram presos ao levar óleo e folhas de cannabis a um paciente no Acre. “Fiquei cinco dias presa, mas, como temos filhos que necessitam de cuidado, saí”, lembra Fernanda, que aprendeu o cultivo para tratar do filho Miklas, diagnosticado com autismo de alta performance, hoje com 22 anos. Já Marcio continua pagando pelo negacionismo científico do Estado, preso há quatro anos (na época, eles ainda não tinham habeas corpus).  

Um levantamento inédito feito pela Agência Pública mostrou ainda que algumas vidas valem menos do que outras. Foram analisadas 4 mil sentenças de tráfico de drogas na cidade de São Paulo, em 2017, as quais mostraram que pessoas negras são mais condenadas por esse crime do que as brancas, mesmo que portem menos drogas. Isso porque a Lei de Drogas não define qual é a quantidade para que uma pessoa seja considerada traficante ou usuária. A decisão cabe aos policiais que fazem a apreensão. A falta de critério objetivo contribui para o aumento de encarceramentos no país, essencial para a manutenção do crime organizado. Esse superencarceramento aliado às frequentes operações policiais antidrogas em regiões periféricas mostram que a guerra às drogas tem um alvo: as pessoas negras e pobres. 

Para mães como Cidinha, o trabalho para mudar isso é árduo. “É importante lutar por uma regulamentação que atenda todos, e não somente a elite. Todas as formas de uso têm de ser respeitadas. Que os pais e mães estejam dispostos a desconstruir seus estigmas para construir uma nova vida”, diz. Mostrando, assim, que as famílias que correm contra o relógio pela vida de seus filhos, e que aprendem a tecer relações com linhas de amor e indignação, jamais vão poder reduzir a dimensão do tempo, porque, como disse uma vez o sociólogo e crítico Antonio Candido, “tempo não é dinheiro, tempo é o tecido das nossas vidas”.

Linha verde do tempo 

 

  • Janeiro de 2015: Retirada do canabidiol (CBD) da lista de substâncias de uso proscrito no Brasil
  • Março de 2016: Autorização da prescrição de remédios à base de CBD e THC no país
  • Janeiro de 2017: Registro do primeiro remédio à base de maconha no Brasil, o Mevatyl, para esclerose múltipla
  • Abril de 2017: A associação paraibana Abrace Esperança se torna a primeira a conseguir autorização da Justiça para cultivar maconha para fins medicinais
  • Maio de 2017: Inclusão da cannabis sativa na Lista Completa das Denominações Comuns Brasileiras (DCB) sob a categoria de “planta medicinal”
  • Dezembro de 2019: Anvisa libera venda de produtos à base de cannabis em farmácias
  • Setembro de 2022: Conselho Federal de Medicina restringe uso da cannabis medicinal, mas volta atrás após pressão popular
  • Dezembro de 2022: Assembleia Legislativa de SP aprova projeto que garante cannabis no SUS. Medida a ser avaliada pelo governador Tarcísio de Freitas em 2023
  • Janeiro de 2023: SP sanciona lei que garante medicamento à base de cannabis no SUS do estado

 

5 pontos que você deve saber para iniciar um tratamento à base de cannabis

 

  1. Antes de tudo, é preciso conseguir uma prescrição médica, com profissionais adequados. 
  2. Com a prescrição em mãos, é possível importar ou comprar os produtos na farmácia. 
  3. É possível, ainda, se inscrever em associações como a Abrace, a Cultive, a Maria Flor e a Associação Humanitária Canábica do Brasil, que orientam e garantem produtos a um preço acessível.
  4. Há famílias que optam pelo cultivo próprio. Para isso, é importante ter a prescrição a fim de garantir suporte médico.
  5. A quem optar pelo cultivo, é possível obter um habeas corpus, com a ajuda de um advogado, para garantir respaldo jurídico. Para isso, a família precisa provar que sabe cultivar, consegue produzir o remédio e que há indicativo de melhora do paciente (aqui, o médico pode atestar).

 

 

Fontes: Emílio Figueiredo, advogado da Rede Reforma, e Maria Aparecida de Carvalho, presidente da Cultive Associação de Cannabis e Saúde 

https://revistacrescer.globo.com

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