Polícia
Investigação sobre maus-tratos de menores é arquivada na Justiça do Espírito Santo
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São três da tarde em Vitória, capital do Espírito Santo, quando Rafael*, de apenas 10 anos de idade, presta depoimento na delegacia. O menino se reconhece em uma das fotografias apresentadas pelo policial. Desta vez, não é suspeito de crime algum. Nas imagens, encontradas no computador da “Clínica Partilhando o Bem”, onde estava internado há quatro meses, ele e outros adolescentes aparecem dopados e amarrados com ataduras nas camas, segundo a polícia.
Um mês antes da situação relatada acima, que aconteceu em maio de 2015, pouco mais de 20 pessoas estavam internadas na comunidade terapêutica, que fica no município da Serra, na Região Metropolitana. Relatos descrevem baratas e ratos transitando no local — uma pousada adaptada —, que era limpo pelos próprios internos. Alguns deles chegaram a dizer que não comiam porque sentiam nojo.
O inquérito policial que narra esses e outros acontecimentos, inclusive agressões físicas, chegou a ir para o arquivo sem decisão judicial, onde ficou por quase cinco meses, conforme apuração da reportagem. O Tribunal de Justiça do Espírito Santo nega que isso tenha acontecido e atribui a situação a um “erro na digitação do andamento”.
No dia 14 de junho, o juiz Alexandre Farina, titular da 1ª Vara Criminal da Serra, onde tramitava o inquérito, foi procurado pelo G1 e, no mesmo dia, decidiu pelo arquivamento, concordando com o parecer o Ministério Público.
O Ministério Público do Espírito Santo informou que não havia provas suficientes para o oferecimento da denúncia. Segundo o MP-ES, a polícia “externou dificuldade de apontar a autoria e a materialidade da infração penal”.
O G1 relata nesta reportagem o que encontrou ao ter acesso às mais de 600 páginas desse procedimento, que estava sob segredo de Justiça por envolver menores. A reportagem também ouviu funcionários da clínica, advogados e familiares de pessoas que estavam internadas à época.
Dados da Secretaria de Estado da Saúde obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação mostram que, de 2014 a 2017, houve 253 internações de menores de idade no Espírito Santo pagas por determinações judicias.
Em menos de dois anos de funcionamento da comunidade terapêutica PB da Silva Me, de nome fantasia “Clínica Partilhando o Bem”, foram 22 internações nesse contexto, que custaram mais de R$ 800 mil aos cofres públicos do estado, uma média de R$ 36 mil cada uma.
A prática de contenção dos internos e outros tipos de agressões físicas e psicológicas eram recorrentes na Partilhando o Bem, segundo os depoimentos colhidos pela Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA).
Aos 14 anos, João* relatou ter sido ameaçado com o uso de spray de pimenta e choque dentro da casa de tratamento. Foi agredido fisicamente, segundo o depoimento. O menino, internado no local há oito meses, disse à polícia, assim como outros, que chegou a ficar três dias amarrado, ocasião em que também havia aplicações de injeções.
“Eu tinha fugido, e eles me pegaram, me amarraram e me colocaram dentro do porta-malas do carro. Quando chegou na clínica, eu estava com as mãos amarradas para trás. Eles bateram minha cabeça no portão em vez de tocarem a campainha. E aí eles subiram me arrastando pelo chão. E eu tenho a marca na cabeça até hoje”, conta.
Os seguranças, que são apontados com mais frequência como autores das agressões, usavam o estigma social carregado pelos adolescentes para humilhá-los, dizendo que aquilo “não ia dar em nada”, segundo o relato de João. Seria, afinal, a palavra deles contra os menores “que já têm ficha criminal e são pobres”.
Os funcionários da casa, por outro lado, tinham direito de pedir socorro sob a salvaguarda da direção do estabelecimento, ocupada por Phelipe Barcellos da Silva, com 21 anos na época. Para eles, estava disponível uma medicação batizada como “SOS”, prescrita por um psiquiatra. “Era só aplicar que depois de cinco minutos a gente apagava”, disse o menino.
Um laudo do departamento de criminalística da Polícia Civil afirma que foi encontrada, durante vistoria no local, uma caixa de Diazepam injetável, de venda proibida ao comércio. O laudo reforça que o medicamento não poderia ser utilizado em uma comunidade terapêutica, apenas em clínicas especializadas. A nota fiscal do medicamento não foi apresentada.
Segundo Phelipe e outros funcionários encontrados pela reportagem, tudo o que era feito no local está dentro da lei.
*Os nomes dos menores foram modificados para peservá-los
ESTADO DE OLHOS FECHADOS
Meses antes, em agosto de 2014, um relatório da Secretaria de Estado da Saúde (Sesa), assinado por um psiquiatra, já trazia relatos de agressões verbais e psicológicas como os descritos acima. O documento, ao qual o G1 teve acesso, foi solicitado pela Vara de Infância e Juventude de Colatina.
Um adolescente de 16 anos, internado compulsoriamente por nove meses na época, contou ao psiquiatra que se acostumou com a situação. O menino disse que se envolveu em uma briga com um dos seguranças da comunidade terapêutica. Depois de fazer ameaças de morte aos internos, o funcionário teria sido despedido.
Outro, também aos 16, relatou que foi amarrado por várias vezes e submetido a medicação injetável por reclamar de situações que ocorriam na comunidade.
Os quatro menores de Colatina ouvidos pelo médico da Sesa confirmaram que havia violências dentro da Partilhando o Bem. Três deles foram considerados aptos para tratamento ambulatorial pelo SUS. O que continou internado teve a transferência para outra instituição por determinação do juiz.
A Secretaria de Estado da Saúde informou que não internou nenhum paciente na Partilhando o Bem por meio de seu sistema de regulação. Isso significa, segundo a Sesa, que as internações pagas foram determinadas pela Justiça com o lugar já estabelecido na decisão.
“A Sesa apenas cumpriu demandas judiciais que determinavam a internação ou a manutenção de pacientes neste local”, diz a nota enviada.
Os relatos causaram espanto ao chegarem até o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), que é contra qualquer tipo de internação compulsória de menores de idade.
“Há uma série de violações de direitos. A reforma antimanicomial teve um alcance extraordinário no Brasil e isso se aplica também a crianças e adolescentes. Eu fiquei estarrecido com esses fatos”, diz o conselheiro Edmundo Ribeiro Kroger.
A fiscalização nesses lugares feita pela Sesa é apenas sanitária, o que também pode ser responsabilidade da prefeitura. Quanto à violação dos direitos, não há uma rotina de monitoramento.
O Ministério Público do Espírito Santo (MP-ES) explica que o órgão só age quando é acionado por meio de denúncias, que podem ser feitas por pacientes, familiares ou cidadãos em geral.
DENÚNCIA ANÔNIMA
O telefone tocou às 15h50 do dia 7 de abril na Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA). Uma pessoa que optou pela preservação da sua identidade disse que os internos da Partilhando o Bem estavam sendo coagidos e agredidos: “Diversos crimes de tortura, tais como humilhação, tomando medicamentos controlados acima do permitido, amarrados e amordaçados em cama”, consta no inquérito policial.
A denúncia anônima recebida na DPCA trazia também outro elemento, que não está na competência de investigação da delegacia: lavagem de dinheiro. Na ligação, a pessoa disse que o dono da instituição seria, na verdade, o terapeuta Gerardo Mondragon, e que o diretor da Partilhando o Bem, Phelipe Barcellos da Silva, de 21 anos, era um laranja.
Phelipe é filho do dono da empresa GSM Comércio e Serviços de Alarme LTDA EPP, onde o dinheiro seria lavado, segundo o denunciante.
Conforme registros averiguados em Carteira de Trabalho, parte dos funcionários que trabalhavam na comunidade terapêutica eram pagos pela GSM. A lista de funcionários a qual a reportagem teve acesso mostra que havia nove pessoas na função de segurança na comunidade terapêutica.
Phelipe disse, por telefone, que trabalha atualmente na empresa do pai, a GSM. O ex-diretor e dono da Partilhando o Bem confirmou que os seguranças eram contratados pela GSM, mas disse que eles prestavam um serviço terceirizado, por meio de contrato. Nada fora da lei.
Depois de conversar pela primeira vez, Phelipe se negou a falar com a reportagem. O advogado Marcelo da Costa Santos, indicado para responder questões relacionadas a ele e à empresa, não respondeu perguntas envidas por e-mail, não atendeu e não retornou ligações.
O colombiano Gerardo Mondragon também foi encontrado por telefone e negou que era dono do estabelecimento. O terapeuta, que trabalha atualmente dando aulas em uma faculdade, disse que é vítima de perseguição.
“Eu posso até estar trabalhando de jardineiro em uma empresa, mas vão achar que eu sou dono. É um mito que se criou aqui no estado comigo. Eu não posso praticamente trabalhar. Se eu fosse dono, não estaria passando por tanto perrengue, tanto sofrimento”, desabafou.
ARQUIVAMENTO PROVISÓRIO
O G1 foi atrás do inquérito sobre o caso na 1ª Vara Criminal da Serra em outubro de 2017. Reafirmando o que mostrava a consulta processual eletrônica, um advogado foi até o local a pedido da reportagem e recebeu a informação de que o documento estava arquivado. Em seguida, foi feito o pedido de desarquivamento por meio de uma petição.
O registro eletrônico aponta que os autos foram para o arquivo provisório no dia 7 de junho de 2018.
Seguindo o trâmite normal, o inquérito deveria ter sido encaminhado novamente para a DPCA para ser concluído, o que só aconteceu no dia 8 de novembro de 2017, após a intervenção do advogado.
O Tribunal de Justiça foi questionado e respondeu que, segundo o juiz Alexandre Farina, “o IP não ficou arquivado, o que houve foi um erro na digitação do andamento”.